CHÃO DE PRATA

Chão de prata

“Au calme claire de lune

triste et beau, qui fait rèver...”

Paul Verlaine

Para Tetuo Morickochi

A hora é morta, mas a rua calada é um rio de prata refletido nas pedras pelo luar filtrado entre nuvens altas, ora esparsas ora adensadas. O seresteiro caminha sob a luminosidade tranqüila, alcança o destino e se debruça a tocar para alguém. A luz filtrada na janela entreaberta apaga e acende, sinalizando que era esperado. Um bilhete flutua, cai no chão e é apanhado pelo violonista solitário. A rosa vermelha colhida há pouco é silenciosamente passada à mão que abre a janela e seu aroma acompanha aquele que a colheu, enquanto a brisa morna bulindo com as flores desprende suaves e envolventes fragrâncias. Abraçado ao violão e sob a cumplicidade da lua sedutora, o seresteiro segue, sonhador, pisando chão de prata. Pára aqui e ali, ao pé de casas amigas, levando-lhes o encanto e a sedução de uma valsa francana, de uma guarânia nostálgica, a serenata de Schubert, toadas e bachianas de Villa Lobos...

É enternecedor o timbre do violão na madrugada. É tão belo, tão envolvente, que alcança as fibras mais preciosas da alma. O violão não é apenas um instrumento criado pelo engenho do homem. É tão vivo que reage ao estado emocional do companheiro e à magia da noite feiticeira, fascinante, bela. Quando se abraça ao peito o instrumento frio, aconchegando-o ao coração e se dedilha as cordas com arte e sentimento, a madeira vibra, ressoa com uma sonoridade que enleva, tão doída às vezes que é como se chorasse a saudade de quando, na mata, ainda árvore, ouvia o canto aconchegante da juriti, o chilreado do canário, a empolgação do bem-te-vi, o gorjeio do sabiá... O som ganha profundidade harmônica e as notas alcançam maiores oscilações e mais ricas respostas sonoras.

É no silêncio, no clima mágico da madrugada, quando tudo é encanto, quando a luz da lua em suave balé com as nuvens ora é prata, ora pérola; quando as sombras excitam a imaginação; que o violão desperta como se alma tivesse e se entrega apaixonadamente a cantar. Talvez por isso é que se diz que é ele o que melhor revela o coração do homem, o que mais sabe cantar o amor e chorar a saudade.

· Tetuo (Tetsuo): o mais constante e generoso companheiro de serenatas.

José Eurípedes de Oliveira Ramos
Enviado por José Eurípedes de Oliveira Ramos em 10/02/2007
Código do texto: T376967
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.