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O GANGSTER MIRIM
Debruçado no balcão do tempo, ocorreu-me repassar as faces daquelas velhas amizades e daquelas que nem tanto. Num desses relances fisionômicos, dei-me conta do Liquinha. Liquinha era aquele a quem diziam ser capaz de estuprar as meninas de seus olhos e ainda se divertir com o que restasse das pupilas!
Mau, tremendamente mau, desde pequeno insinuara-se ser um grande gangster dos filmes, conduzindo os colegas menores nas brigas de quadrilha que ele frequentemente arrumava.
Ao se autodenominar “chefe de quadrilha” seus olhinhos ignorantes brilhavam de prazer, iluminados pelo baita ego que precocemente se lhe manifestava.
Morava a sós com o pai viúvo num casarão da Av. Ceará, cujo quintal, enorme, reunia os imaginosos asseclas mirins.
 
Minhas habilidades manuais contam-nas nos dedos de uma das mãos, se tantas. Contudo, sempre fui bom fazedor de estilingues: forquilhas de veludo vermelho, extremamente resistentes e aparelhadas; ligas de borracha natural, de grande elasticidade e potência, e finalmente os courinhos escolhidos e cortados com capricho nas sapatarias dos paraibanos. Quanto aos arcos de guatambu, talhados à grosa, podia-os dizer invejáveis!  E não eram essas as armas predominantes nas batalhas campais que Liquinha dizia comandar?
Através dessa arte me vi, um dia, convencido a estar no quintal do casarão da Av. Ceará.
 
As mangueiras da Santa Tereza distavam pouco do piscoso Cascavel.  Situadas às margens da estrada que levava ao novo loteamento do Setor Sudoeste, aquela faixa de cerrado coberta por várias dezenas de mangueiras estava abandonada há anos, pois, nela, sequer o escombro da morada existia.  Aqui, não só em épocas dos frutos os grupos de meninos das Vilas Aurora e Coimbra, Toquinho e Campínas se reuniam, como frequentemente  estavam a disputar as grimpas das árvores, passando de uma a outra onde os galhos se tocavam.  Divertiam-se nas alturas ao risco de fraturas ou mesmo da morte.
 
Eis me, então, sob as frondes das grandes árvores. Empunho tenso o estilingue preferido, ao tipo de um soldado de Al Capone, pronto a disparar minhas pedras --- bolsos cheios de pequenos calhaus somados a algumas bolas de gude.
Liquinha, à frente, grita algo em forma de insultos ao grupo rival postado à frente, pouco mais de meio campo de futebol.
Em represália, o líder adversário arma seu estilingue e atira. Segue-se uma saraivada de pedras e flechas contrárias. Protegemo-nos atrás dos vigorosos troncos e logo respondemos.
As represálias continuam. Pedras zunem em volta enquanto flechas pontiagudas com pregos cravam ali perto. O movimento excitante de atirar e proteger-se se prolonga por bom tempo, sempre à distância, nada de assaltos ou corpo-a-corpo; a adrenalina vinha de longe; acabada a munição acabava a batalha e cada grupo se dispersava a seu rumo em meio a gritarias e a rogos de pragas.
Foi o que percebi naquele dia em que os grupos rivais se contentavam de praticar aquele jogo de agressão sem ferimentos imediatos e chocantes, até que... até que a imprudência cobrou caro de Dézinho: uma pedra certeira atingiu-lhe o olho!
Ferido, o garoto caiu em apavorante berreiro, vindo o pânico assomar alguns. Não se ouvia mais o zunido das pedras vindo, tampouco ameaçavam as flechas chegando. Consequências viriam. A exemplo de cá, do outro lado adversários desertavam às carreiras. Soube depois que Liquinha levou o ferido Dézinho embora. Menos mal.
Soube, por que na fuga me refugiei nas águas do Cascavel e por lá fiquei.
Daquele dia em diante, meus estilingues e meus arcos ficaram apenas por conta dos passarinhos.
Do Liquinha, sós notícias; inclusive que ele canivetara um daqueles, dias depois.