Amnésia

Sou do tipo distraída. Atenta ao todo e desfocada de tudo. Perdida em pensamentos, divagações, viagens interiores. Do tipo que esquece a bolsa quando encontra as chaves. Atrasada, sempre correndo, sempre esquecendo. Distraída do tempo, dos rostos e nomes.

Mas nunca tinha ocorrido esquecer-me de mim. Amnésia mesmo. Olhar para o espelho e me perguntar quem é aquela que sorri sem jeito e diz "muito prazer". Acordar e não saber que vida é aquela, ter a sensação de estar vivendo a vida de outra pessoa, não a minha.

Aconteceu comigo. Parece loucura porque não sofri nenhum acidente, não bati a cabeça, não tive traumatismo craniano. Mas a vida de vez em quando dá um "presta atenção" na gente. E eu precisei levar 2 bofetadas para acordar. Um nocaute para estacionar.

Acordei com amnésia querendo saber como vim parar aqui, que pedaço de mim fez essa viagem e que parte ficou lá atrás, sem coragem de engatar a 1a. marcha. Naquele dia acordei com saudade daquela que não seguiu viagem, daquela que parou no tempo, daquela que tinha muitas coisas para me contar porque segui a estrada distraída e ela esteve a me observar, sabia dos meus erros, entendia minhas fraquezas, foi expectadora da minha jornada.

Acordei sem identidade e quis me encontrar com aquela que sempre soube o que queria, com a menina que ainda não tinha experimentado a dureza da vida.

Como no filme "A Dona da História" em que a Carolina de meia idade encontra-se com a Carolina de 18 anos e se pergunta como teria sido a vida se tivesse feito outras escolhas, passei semanas no pronto socorro afetivo tentando me curar da amnésia da alma. Revi fotos, reli cartas, mergulhei em diários. Tive encontros com a menina, a adolescente, a jovem cheia de planos e sonhos. Voltei a escrever, reencontrei amigos, assisti a videos. Pouco a pouco a memória foi voltando, a comunicação se restabelecendo, o branco dando lugar ao entendimento.

A vida não é simples. Quando crianças já temos noção disso, mas a inconsciência nos protege. Adolescentes, sentimos as emoções transbordarem sem critério e não dominamos o território minado. Jovens, nos empenhamos em concretizar nossos planos: fazer uma boa faculdade, arranjar emprego, ganhar algum dinheiro, casar, ter filhos, construir nosso lar. A vida é tomada por acontecimentos, listas de convidados, listas de compras, orçamento familiar, curso de noivos, gestante e batismo. Não há pausas, descanso, retorno. E pode ser que continue assim durante toda a vida adulta até a aposentadoria ou quando vier a "síndrome do ninho vazio"e enfim tivermos tempo de sermos só nós...

Porém, pode acontecer antes, aos 30 e poucos e um desvio não programado. Tive a sensação de ter seguido a estrada errada, confundido o endereço no GPS, dobrado a esquina distraída. Acordei com amnésia, feito ressaca depois do porre.

Então uma noite recebi uma visitante ilustre. Era a menina dos diários. Passamos a noite revendo histórias, pondo o papo em dia, compreendendo as escolhas, aceitando os caminhos.

No fim a menina dos diários me encarou com ternura dizendo que fiz a escolha certa, que estou no lugar que sempre desejei estar apesar dos conflitos, dúvidas e mágoas.

"Isso faz parte da vida"_ ela disse e acrescentou: "Apesar de tudo, essa é a melhor versão da sua história"...

No dia seguinte a memória voltou e tratei de ser feliz.

Fabíola Simões
Enviado por Fabíola Simões em 16/07/2012
Código do texto: T3780336
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