TELEFONEMA (MARTIM E HANS) _Premiado Letras de Itanhaem 2012
- Está lá!
- Estou cá...
- Hans?
- Ya... Quem é a esta hora?
- É o Hans, de Amsterdãs? Está cá Martim Afonso.
- Martin, liga-me de madrugada para fazer gracinhas? Sou alemão e não holandês. Holandês era o Nassau.
- Hans, então como vão as alemãs?
- Ora, não me amole, Martin.
- Te acalmes, meu gajo. Afinal, há quanto tempo não nos encontramos.
- Nunca nos encontramos.
- Não?
- Não!
- Mas, foi por pouco. Sempre estivemos tão próximos. San Vicente, Concepcion Village.
- Martin, seu inglês continua horrível.
- Mas, eu navegava bem. Já, você naufragou. Tiveste sorte que não te comeram como ao Sardinha.
- Seu português também continua péssimo, Martin... Desembucha... O que você quer?
- Notícias da Vila... É verdade que a cidade é tão feliz que até as pedras cantam?
- Que bobagem, Martin!
- Não é bobagem... Se for verdade que as pedras cantam, é muito sério.
- Que diferença faz se as pedras cantam? É o som dos ventos.
- Psiu... Sei disso, mas fale baixo, pois o telefone pode estar grampeado.
- Não estou entendendo nada, Martin...
- Estamos em campanha para santificar o Zezito.
- Quem?
- Zezito, o padre José...
- Seja mais claro...
- Ora, pois! O Anchieta.
- Ah! Sim... Aquele jesuíta espanhol que chegou por aí como imigrante português e a província ultramarina quer canonizá-lo como santo dela. O que tem isso a ver com as pedras da Vila?
- Oh! Mai goddy... Gajo de dios... A Santa Madre Igreja aceitou um milagre dele e elevou-o a beato. Ele precisa de mais um milagre para a canonização... Se conseguirmos comprovar que as pedras cantam por intercessão dele está feito. Anchieta vira Santo... Quem sabe El Rey manda construir uma catedral na Vila. Atrairá mais turistas, mais verbas reais. Você acha justo recebermos menos verbas que San Vicente?
- Chega, Martin! Onde eu entro nessa história?
- Hans, você pode ser testemunha importante. Não se pode esquecer que você é uma pessoal especial. Salvou-se de virar chucrutes no caldeirão dos Tupinambás. Você bem poderia afirmar que as pedras começavam a cantar depois que Zezito as pisava.
- Ai! Meu São Nicolau... Não devemos enganar aos nativos.
- Uma mentirinha bem intencionada, por uma causa justa... Não fará mal a ninguém...
- Está bem, Martin, vou pensar no assunto.
- A corte agradece.
- De nada, mas por que não procurou o Leonardo, ao invés de vir acordar-me?
- Ah! Sim... Padre Léo está na lista, mas é meio suspeito.
- Porque?
- Primeiro porque ele é brasileiro e os analistas dos milagres podem pensar que seu testemunho é tendencioso, teria interesses além da canonização. Depois, essa história de Padre Voador que espalharam sobre ele, é bem capaz de roubar a cena. Dizerem que ele levitava. Você acredita que os silvícolas do Sul da capitânia chamam-no de Avarévevê? Planejam homenageá-lo construindo uma grande taba com ocas sobrepostas, perto da Cama de Zezito.
- Para que ocas sobrepostas?
- Todos querem morar perto de Zezito. Deve ser para ler as poesias que ele escreve na praia.
- “Pera” lá... Anchieta escreveu poesias nas areias de Iperoig e não na Vila.
- Sério? Pode ser a segunda edição.
- Ai... ai... ai... Depois riem de mim porque fui pego caçando jacus... Os índios não sabem ler latim, Martin... Só tupi-guarani.
- Oh! Raios. Tens razão... O que será, então?
- Especulação imobiliária.
- Ora, o Brasil é tão grande.
- Que nada, Martin! Dizem que não cabe mais ninguém nos campos de Piratininga. Parece que seu rei já mandou várias turmas de bandeirantes procurarem terras mais a oeste. Pretende construir uma fortaleza na terra dos Goiás para proteger os caciques brasileiros. Vai custar uma fortuna.
- Como sabe disso, Hans?
- Não tem escutado os tambores? As ações das construtoras subiram mais de 60% na bolsa de Frankfurt. Tem gente ganhando muito dinheiro, inclusive com ocas populares.
- E nós tendo que escapar de flecha perdida todo santo dia.
- C’est la vie, Martin. O mundo é dos espertos. Agora preciso desligar. Estou com sono. Ligue-me outra hora.
- Está bem!... Pense com carinho no assunto do Zezito. Precisamos de um milagre brasileiro. Só unzinho... De verdade!