Os mendigos sois vós

Um serviço de saúde, independente de sua natureza assistencial - público ou privado, preventista ou curativista, de emergência ou eletivo - que não consegue atender as demandas de um morador de rua, precisa urgentemente ser repensando. Necessita ser interditado este serviço. Não que possua maior ou menor valor quando comparado aos demais, mas pelas condições às quais normalmente sobrevive neste mundo capitalista, o morador de rua se contenta com pouco ou quase nada. A sociedade dá as costas aos mais necessitados, despreza-os como objetos sem utilidade. É uma sociedade preconceituosa, misógina e racista. Se o serviço não consegue satisfazer a necessidade de um mendigo, conseguirá de alguém? Um único real doado, um sorriso, um cumprimento, um aceno e uma comida são motivos pelos quais um morador de rua extrapola em felicidade. Chega à exaustão de alegria com pouco. Pois bem. Não sei se o que vou descrever é uma fábula ou um conto real, uma mentira desvairada, uma lorota, um sonho que eu tive. Quisera que fosse um fruto da minha pobre e miserável imaginação. Mas adentrava eu, em um serviço assistencial do SUS, e me deparei com uma cena deprimente. Encontrei um morador de rua, que havia sido atendido no dia anterior por esta pessoa que vos fala, reclamando aos prantos do não atendimento que lhe fora prestado. Este morador de rua que não possui um tostão furado, que não possui casa, nem carro, nem comida, nem roupa e nem nada. Um morador de rua que possui apenas um cachorro companheiro e uma garrafa de pinga, que dorme num papelão no inverno gélido do sul. Uma pessoa que tivera um corte profundo no pé esquerdo imundo das caminhadas, que apresentava sinais de infecção, não teve o curativo realizado por já haver passado das cinco horas da tarde, tempo limite aos que carecem de alguns cuidados. O relógio marcava então cinco e vinte. Quisera ter um relógio este sujeito. Quisera ter uma vida digna. Mas fora negado um direito por dois profissionais de nível superior, metidos nos seus jalecos brancos encardidos, nas suas calças jeans leves, com a justificativa de uma burocracia pobre e barata. Dois profissionais que do luxo usufruem. Castraram o desejo deste pobre senhor de ter o pé limpo. Mundo burocrático este nosso, mundo podre. Como dormirão estes profissionais, sabendo que o pé do mendigo arde como brasa e se proliferam microrganismos pelos poros? Como dormirão já que negaram um procedimento que não dura mais do que quatro minutos? Soro fisiológico, iodo, gaze e um esparadrapo e o mendigo seria a pessoa mais feliz do mundo. Mas dormirão sem pestanejar, esquecerão do pobre homem ancião que ri com seus poucos dentes. Definitivamente, muitos preferem usar o seu direito constitucional de ser uma péssima pessoa.