Uma noite mágica

Alguns poucos leitores saberão, mas a quase totalidade desconhecerá, alguns factos que ocorreram por volta do começo dos anos 70, enquanto frequentávamos em regime de internato o famoso Colégio Militar, sito em Lisboa/Portugal. Éramos nessa época, adolescentes na flor da idade, que viviam os seus dias confinados a um mini quartel escola, onde o rigor e a disciplina se faziam sentir em cada dia. Faço esta introdução, para vos contar um episódio extraordinário e digno de nota, que se passou fora das vistas, das normas e do sistema autoritário em que vivíamos nessa época, como alunos do Colégio. Nos fins de semana, quando saíamos para ir a casa, reuníamos quase sempre um grupo de amigos muito próximos e que eram também colegas de internato. Esse grupo, era amigo de outro grupo, desta vez composto por meninas e colegas entre si, que tinham como característica comum, o facto de estudarem também em regime de internato, no então famoso Instituto de Odivelas. Bom, até aqui, nada mais comum e lógico do que um grupo composto por dois grupos, com muitas semelhanças e aspirações. Os nossos finais de semana, eram aproveitados com muita intensidade e criatividade, já que passavam muito rápido e na segunda-feira tudo voltava à rotina do Colégio. O episódio que eu gostaria de registar, extravasou largamente esses encontros habituais entre nós. Numa dessas tardes de domingo, quando a hora de voltar para o Colégio começava a dar os seus sinais de evidência, alguém teve uma ideia genial. Por que não ousar montar um plano diabólico, que iria subverter totalmente o sistema das duas instituições. Algo que seria o maior e o mais bombástico dos planos já arquitetado por alunos do Colégio Militar. Alguém se adiantou e disse: "Vocês meninas, topariam hoje à noite entrar no Colégio Militar com a nossa ajuda e passar algumas horas conosco lá, tentando ludibriar todo o sistema rígido e infalível do Colégio? Fez-se silêncio. A ideia era muito louca e difícil de ser assimilada por todos os que estavam presentes. Mas estranhamente e passados poucos segundos, essa ideia se tornou mais do que um simples plano. A sorte estava lançada. A coisa ganhou corpo e começamos a combinar os detalhes. Era uma noite fria de Inverno e por volta das 10/11 da noite, após termos nos apresentado ao Oficial de Dia para regressarmos às atividades da praxe, lá estávamos nós esperando as nossas amigas que chegavam de táxi, junto ao Largo da Luz. Era o começo de uma grande aventura. No Colégio, nós já nos tínhamos encarregado de disfarçar o mais possível, todas as pistas. Era habitual passarem uma ronda pelas camaratas, para verificar a presença dos alunos deitados nas suas camas. Essa conferência era feita através duma lanterna que ajudava a visualizar se tudo estava normal. Assim e com a ajuda de muita criatividade e malandrice, confeccionamos os nossos disfarces sob a roupagem das camas, de modo a parecer que alguém estava efetivamente ali dormindo (o chamado por nós na gíria, de "boneco"). Já no Largo da Luz e em frente ao portão de entrada, contornamos o Colégio pela esquerda, até atingirmos uma zona de arame farpado, junto ao campo de aeromodelismo, local que nós já tínhamos previamente estudado como favorável aquele plano. A nossa entrada seria feita por baixo do arame, numa pequena cova preparada para esse efeito. Quem não conseguisse, teria de passar por cima. Para nós adolescentes, aquilo era uma deliciosa e inusitada aventura. Muito para além de qualquer imaginação. E o prazer de enganar o sistema rígido e infalível, era sublime. Lembro-me que havia um soldado sentinela, que passava periodicamente rente ao pavilhão de aeromodelismo com a sua arma pronta para qualquer eventualidade. Isso dava um toque de genialidade e sofisticação a todo o processo. Conseguimos entrar e nos ajeitar muito confortavelmente para passar a noite, que decorreu como uma sessão mágica, regada por um forte sentimento de cumplicidade e por muita boa música; Genesis, Pink Floyd, etc. A sensação daquele momento, irá com certeza se perpetuar na memória daqueles que participaram do projeto. Uma ideia inusitada que ganhou corpo e se instalou de uma forma natural e plena, expoente da nossa vivência e convivência. Reza a lenda, fundamentada em factos verídicos, que as nossas amigas enfrentaram alguns momentos difíceis, quando voltaram ao seu Colégio. Em relação a nós, o episódio não foi divulgado nem comentado pelas altas patentes do Colégio. Embora alguém tenha alvitrado que, ambos os diretores o souberam, tendo-se achado por bem, não divulgar o ocorrido.

Mongiardim Saraiva
Enviado por Mongiardim Saraiva em 25/08/2012
Reeditado em 05/07/2020
Código do texto: T3848824
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