Tempos de catequese

Confesso que foi traumático. Ainda em tempos de 4. ano primário era chegada a hora de eu ser preparada para a primeira comunhão.

Tempos estranhos aqueles: 1968. pudera! A Nação inteira estava sendo preparada para entrar pelo cano, no mais trágico momento da sua história. O angustiante Ato Institucional n. 5 estava em gestação e se implantou em dezembro daquele ano. Se existiu uma gestação maldita foi essa, que consagrou o absurdo como lógica, o direito de um sobre o outro dentro da mais arrogante boçalidade e crueza. O ano só poderia ser nublado, carregado. Um ano analfabeto no que se refere à inteligência do poder. Ano consagrado à implantação da insanidade como meio, dedicado à sandice extrema. Ano que não acabou mesmo.

E chegou a hora de eu fazer a catequese. As primeiras aulas foram na minha escola, no SESI. Aulas ministradas depois do horário normal. A dinâmica consistia basicamente em chamadas orais, com uma professora sem nenhum brilho, nenhuma vontade ou alegria de ensinar. Parecia que nem ela estava acreditando nas coisas das quais pouco falava.

Logo no início de cada aula eu era a primeira aluna a ser chamada e a minha resposta, invariavelmente, era “não sei”! Mas eu não sabia mesmo. Eu não entendia uma palavra que a professora dizia. Santíssima Trindade, prá mim, era o nada vezes três (porque era Trindade). Tinha hora que o pecado era mortal. Outro dia , o pecado mudava de nome: era capital. Mas tinha hora que ele virava venial. Eu só sei que eram três modalidades, mas nunca entendi direito esse negócio.

Às vezes a catequista ficava muito brava e achava que a gente era ignorante demais.

Como eu ia reprovar, a minha mãe me tirou dessa turma e me matriculou na catequese da Igreja, lá no nosso Cambuci. De novo, me dei mal. O padre Antônio, bravo e recalcado que só, jamais deu um sorriso. A coisa foi ficando pior quando ele falava em fogo do inferno. Devia ser prá pecado mortal. Ou venial? Isso eu também não entendi direito, mas havia o fogo do inferno e Deus escrevia tudo o que a gente fazia de errado num caderninho e, a partir das anotações, tudo nos seria cobrado no dia do juízo final.

E mais: haveria choro e ranger de dentes. Eu tinha medo de ranger de dentes, porque, à noite, às vezes o meu irmão rangia. Então eu me punha a esperar o fogo do inferno. Eu me cobria antes de dormir, me enrolava no cobertor, ficava com as mãos cruzadas sobre o peito porque foi assim que uma das catequistas , bem brabinha, dizia que era prá fazer. Lá na frente, ela cruzava os braços magros sobre o peito e dizia que era aquele o jeito certo de dormir e não “com as mãos em qualquer lugar”. Eu ficava nessa posição e de olhos arregalados. Mas ia ficando tarde e eu acabava dormindo e nunca fui queimada pelo fogo do inferno.

Num domingo, meus primos estavam em casa e fiquei na esperança que a minha mãe se esquecesse de nos mandar para a igreja. Mas ela se lembrou. Fomos. Domingo nublado, triste, frio. O padre Antônio fazia as suas pregações e falava do inferno, e falava do inferno. Nós, ajoelhados. De repente, veio um trovão. A sensação de angústia que me deu foi indescritível.

Reprovei algumas tantas vezes, nem sei quantas. Acho que fui aprovada num momento em todos tinham a mais absoluta certeza de que eu sempre seria um zero à esquerda em matéria de religião. Devem ter dito: “passa logo essa herege. Vai pro inferno mesmo... não haveremos de perder o nosso precioso tempo”.

Dia da primeira comunhão, veio aquele outro medo: de que a hóstia encostasse no céu da boca ou no dente: inferno garantido. Roupa branca, véu, vela na mão , enfileirados fomos nós. Só que a hóstia encostou no meu dente e passei dias incontáveis com um medo, mas era uma “paura” tão incomensurável que me falta palavras prá qualificar e quantificar o sentimento.

Exatamente no mês seguinte, no dia 17 de janeiro, estávamos passando férias em Santos. Ali na areia, fazendo castelinho, bem quietinha na minha solidão, pensei: passou um mês. Estou livre! Acho que tenho ainda alguma chance de ir para o céu.

Ainda bem que veio o Concílio Vaticano II, sob o Papa João XXIII. Com ele, a Igreja deixou de ser tão absurda e foi se humanizando, se aproximando dos mais simples, mostrando um Jesus bom, um Deus infinitamente amoroso e pronto para perdoar e nos aceitar. Nascia a Igreja Nova, mais próxima dos humildes, mais fraterna, capaz de ouvir, se aproximar e não mais disposta a atirar pedras prá todos os lados em nome do castigo eterno. O Concílio passou a repensar as relações da Igreja com o mundo, promovendo inclusive uma relativa liberdade religiosa, renovando o catolicismo.

Mas é claro que a Igreja seria capaz de fazer um Concilio do quilate do Vaticano II. Afinal de contas, os anos 60 foram os mais extraordinários em termos de produção de cultura, inovação, crítica social, contestação, feminismo,pacifismo, críticas ferozes ao capitalismo, movimentos culturais de juventude. Veio o Maio Francês.

Ela não poderia morrer naquela sua total decrepitude. A mudança de mentalidade era inevitável. A Igreja foi se tornando mais positiva e ativa para poder melhor enfrentar e acompanhar as transformações do contemporâneo.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 30/08/2012
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