Pensamentos Esparsos

Prólogo

Não existem pensamentos contínuos. Ouso asseverar que no mundo real ou extrafísico tudo é disperso pela falta de continuidade. Este texto mostrará os valores de alguns sentidos humanos negligenciados pela maioria dos nem sempre racionais seres.

Trata-se de uma obra ficcional, fruto da livre criação artística sem nenhum compromisso com a verdade. Nomes e situações, assim como fragmentos do texto poderão coincidir com outras situações vivenciadas por outrem. Essa quase paridade contextual pode e deve ser considerada circunstância isentiva.

UM HOMEM EM SEU LABOR

As uvas pretas e maduras precisavam ser colhidas. Pela aparência, com película esbranquiçada, a maioria das pessoas conclui que se trata de inseticida. Não é não. É um fermento natural, latente, que apenas espera o tempo propício para a fermentação do suco da uva. É o segredo do vinho natural que se evidencia exteriorizando-se no revestimento das bagas sucosas de cor, sabor e grau de acidez bastante variável conforme a espécie da videira.

Depois de lavar cabalmente as mãos, e certificar-se de que as unhas também estavam limpas, Henrique esmigalhava as uvas numa grande bacia com suas mãos gigantes. Sem água, açúcar nem qualquer outro ingrediente o homem machucava sem nenhum dó as bolinhas escuras que, num esforço inútil, pareciam querer escapar do esmagamento medonho. Como tenazes de aço as mãos do obreiro estavam fadadas ao sucesso.

Por entre os dedos do predador, subumano, escoria a seiva da vida daquelas criaturazinhas que outrora enfeitavam uma dos milhares de videiras viçosas de seu patrão e dicotômico por complementar castigo. Wilson, patrão zeloso e educado, às vezes, perdia o controle emocional quando chegava de uma longa viagem e não encontrava seu melhor vinho natural. Com o pensamento voltado para o rosto oblongo do patrão, nem sempre enfezado, Henrique olhou para o céu plúmbeo.

ENSINAMENTOS DO PATRÃO INSÓLITO

A VISÃO E INTERPRETAÇÃO DO QUE SE VER

Flanavam os pensamentos de Henrique e as mãos em gestos ritmados e mecânicos faziam a essência do suco nutritivo encher a bacia florida. Fazia uma semana que conversavam patrão e empregado sobre a necessária e urgente contratação de dois profissionais da agricultura para suprir, em breve, vacâncias. Naquela ocasião Wilson dizia e Henrique escutava embevecido:

“Visão não é só a capacidade de enxergar. Se você entende o que ver tem visão ampla e útil para o progresso pessoal. E para isso não bastam olhos saudáveis ou óculos de grau. É preciso informação. Mas não informação tendenciosa, capaz de causar dubiedade.

Uma boa visão precisa ser imparcial e independente. Veja noticiosos que dão pluralidade de assuntos, informações e opiniões. Isso dará a você não apenas a capacidade de melhor enxergar o ponto de vista do mensageiro, mas, sobretudo o poder de desenvolver a sua opinião sem receio de erro.”.

A ARTE DE OUVIR QUE NEM TODO MUNDO DOMINA

“O ouvido é apenas um condutor a serviço da mente. Se a mente for bem treinada compreenderá o que o ouvido transmite porque tem desenvolvida a capacidade de discernir. Quem ouve bem não define trilhas, mas abre caminhos e espaços largos para construir um espírito crítico. Respeitoso, sem coagir, o bom ouvinte cativa até o maldizente e, certamente, mudará uma opinião esconsa a seu respeito.”.

O BEM FALAR E ESCREVER NÃO SÃO FÁCEIS

“Há quem jure que bom de papo é aquele (a) que fala demasiado. Não é! A boa conversa é aquela que informa, ensina, educa, respeita o silêncio do ouvinte pela lentidão no processo da informação acurada. Para falar e escrever bem é preciso ser um contumaz e excelente leitor.

Atenção! Não se confunda “contumaz” com pessoa relapsa que não cumpre ordem ou intimação judicial, deliberadamente. O bem falar e escrever requer denodo, ousadia e apurado senso de responsabilidade. Quem fala e escreve bem não está reinventando a cultura, mas, sobretudo aprimorando-a.”.

O FINAL DE UM DOCE DEVANEIO

Os pensamentos de Henrique o absorviam. Voava o tempo e ele não percebia, mas um perfume conhecido, essência almiscarada, fê-lo erguer a cabeça para enxergar o sorriso iluminado de Luzia. A mulher chegara como se flutuasse em nuvem esplendorosa. Sua indumentária simples agradava aos olhos do homem rude, leal e bom companheiro.

– É quase meio-dia e meia! Venha almoçar e me responder uma pergunta. - Falou Luzia como se estivesse pedindo desculpas pelo atraso de sua bem-vinda chegada.

– O patrão só chegará à noite. Eu precisava fazer esse vinho porque só há um barril e duas jarras da última feitura.

– Ia perguntar sobre o vinho. Você já respondeu. Ele telefonou. Disse que chegará para o jantar. Perguntou por você, pelo Hulk, pela Jade, se a branquinha estava melhor e se as rações e vacinas haviam chegado. Ah! Ele quis saber se a dentista havia se apresentado para avaliar os dentes dos demais empregados.

– Falou pra ele sobre o autorretrato que você está pintando?

– Falei e ele disse que comprou pincéis e telas para mim. Ah! Ele perguntou também qual livro estou lendo e ficou contente quando disse: “Tudo valeu a pena”, de Zibia Gasparetto... Ande! Venha almoçar. Trouxe o meu almoço para comer em sua companhia. Isso ele também nos ensinou. Faça uma prece e vamos cuidar nas coisas. - Luzia continuou falando e ajeitando nos cabelos a rosa de cor rosa:

– O doutor disse que gostaria de jantar peixe. Estou pensando em fazer Filé de peixe com aspargos gratinados, com molho de ostras e espinafre, coberto com pistache moído. Você gosta e ele adora. Sabe quem me ensinou essa receita? A Conceição amiga da Antônia. Lembra-se delas?

– Claro que me lembro. Nem uma nem outra sai do meu pensamento. Como esquecer pessoas tão refinadas e serviçais? Eu, você, nossas duas filhas Renata e Rosana, temos aprendido muito com o patrão e demais amigas e amigos. O doutor Wilson não só amplia nossos horizontes, mas também nos dá uma vida digna e honrada. Certa ocasião eu o admirei mais ainda quando ele disse, entre goles estalantes desse vinho que me ensinou a fazer:

“Quando uma pessoa sente inveja de quem tem mais dinheiro e cultura, não deveria ficar sentado reclamando. Devia fazer algo lucrativo e estudar mais para ganhar dinheiro e ser culto, passar menos tempo dormindo, comendo, bebendo, fumando, brincando. Deve trabalhar mais. Viver com temperança e aprender a boa arte de ver, ouvir, falar e escrever.”.

De fato o homem rude e leal aprendeu a arte de fazer vinho e se esmerou nessa prática não só observando o patrão “por a mão na massa”, mas, principalmente, depois que leu e releu um livro que ganhou de presente no dia de seu aniversário de casamento. O nome do livro? “Vitivinicultura sem segredos”.

Depois da prece almoçaram em silêncio. Luzia estava feliz e radiante. Apaixonada, os olhos ornados por sobrancelhas bem-feitas suavisavam mais ainda a boca carnuda e úmida. Nos cabelos uma rosa silvestre complementava como um adorno angelical as feições plácidas. Na linda mulher enrubesceram-se as maçãs do rosto ao perceber o olhar do marido que inspirava um misto de doçura, proteção, voluptuosidade e paixão.

Sem dizer absolutamente nada Henrique colheu uma uva graúda e milagrosamente sobrevivente para depositar nos lábios carmins de sua amada. Esse gesto também lhe fora ensinado quando ouviu do patrão e decidiu, nesse envolvente instante, repetir quase sussurrando:

“Sou originária da terra, da água e do ar. Sou a fruta das trepadeiras dos além-mares. Sofro quando sou esmagada, mas na dor de minha morte prometo dar e sentir prazeres inomináveis ao me liquefazer em tua boca.”.

Luzia deu uma sonora gargalhada e disse em um sussurro: “Parece um poema. É lindo! Mas se não souber recitar fica parecendo coisa de tarado”. Ambos riram a bel-prazer. Estavam felizes em pensamentos esparsos.