Prisão de passarinho

Prisão de passarinho

Estamos numa manhã tranqüila de quarta-feira, Seu Fermino, que acabou de tomar seu café, vai para a varanda e verifica o tempo. Comenta com a companheira, que o dia, apesar de pouco sol, está lindo, propício para uma caminhada. É o que faz, pega o seu chapéu e sua bengala e sai. Os degraus da escada desce devagarinho, afinal, está já passando dos oitenta anos.

Tio Fermino já na calçada, segue locomovendo-se com certa dificuldade, mas o auxílio da bengala lhe dá a firmeza necessária para continuar com sua habitual caminhada, praticamente todas as manhãs. Anda apenas por ali, até no final da quadra, ou um pouco mais além. Sem pressa, vez em quando dá uma paradinha, olha o movimento em volta e continua. Gosta também de apreciar os jardins bem cuidados, o verde que cerca cada morada. Tio Fermino (é assim que toda vizinhança o chama), apesar da idade avançada, possui uma lucidez impressionante. Consegue recordar-se com detalhes de fatos ocorridos há décadas. Não é muito de conversar, mas quando fala, sua voz é pausada e tranqüila. Mas as suas muitas horas de introspecção, por vezes são interrompidas com a algazarra das crianças que, frequentemente brincam perto dali. Mas isso não muda seu humor, é de fácil convivência com todos. O que pode acontecer, é que as artes inocentes ou a bola que erra o caminho e acaba junto a seus pés, o lembrem de seu tempo de guri.

No final da tarde, ele adora sentar na varanda para apreciar o vai e vem dos transeuntes. Vez em quando até atravessa a rua e anda por ali. Fica conversando com o seu Abílio, ou vai se aventurando alguns metros a mais, em cima da calçada. E foi numa dessas tardes, que uma gaiola, quase junto ao teto, dentro da garagem dum outro vizinho lhe chama a atenção. Dentro, um passarinho. Está ele ali, meio cabisbaixo, triste. Tio Fermino repara no homem que acaba de chegar no seu Vectra e constata que é morador novo. È por isso que não havia percebido a gaiola antes. Continua sua caminhada e começa a refletir sobre o visto. Imagina que se esse passarinho tivesse o poder da pensar e até de falar também, diria mais ou menos o seguinte a esse novo morador, seu dono:

Ei, você aí! Pelo amor de Deus tire-me daqui! Aliás, patrão, posso chama-lo de você, posso?

O dono diria que sim. Então me escuta: de que adianta eu ter de tudo, do bom e do melhor, se não tenho minha liberdade. Sei que água fresquinha não me falta, nem comida. Ah! Patrão!.... Você não imagina como eu tenho saudade da minha liberdade. Eu gostaria tanto, mas tanto, de poder voar! Ei, patrão! Quem sabe a gente troca. Deixe-me sair e faça para você uma gaiola. Ou mande fazer. Poderia até ser importada. Do tamanho, deixe ver....uma bem grandona. Digamos....quatro por quatro acho que chega, ainda mais que você não sabe voar, poderia pelo menos dar alguns passos, se mexer um pouco quando desse vontade. Ali dentro, você teria de tudo. Até uma banheira, com pegadores de ouro, hidromassagem, perfeita para uma boa relaxada. Poderia levar uma cama bem macia e tudo o mais que complementasse uma “vida” bem confortável ali dentro. Pois é, o espaço seria pequeno, mas iria caber. Também, para que mais? Ah! Ia-me esquecendo, o que de maneira nenhuma poderia faltar, seria um cofre. Poderia até ser maiorzinho, pois iria caber num canto junto à grade. E por favor, se isso fosse possível, não vai me esquecer da combinação. Se a memória estivesse fraca, poderia anotar os números e deixaria à vista, afinal, seria só você ali dentro. Poderia ali guardar seus mais valiosos pertences. Entre eles, obviamente, o dinheiro. Em especial, o nosso real e as verdinhas. Mas pelo amor de Deus, você de maneira nenhuma também não poderia esquecer das verdinhas e nem das jóias. Mas antes, verifique se são realmente verdadeiras, pois hoje em dia, nunca se sabe. Da cotação do dólar, suas oscilações, ficar a par desse e demais assuntos do mundo lá fora, você o faria através dos jornais que eu lhe mandaria todos os dias. Até pensei que eu poderia lhe dar permissão para uma visita especial, pelo menos a cada quatorze dias. Mas pensando melhor, não. Não porque você, na qualidade dum morador de gaiola não poderia receber visitas, afinal, passarinhos em gaiola não recebem visitas. Pois é, padrão. Cansei. Cansei de tanto falar e até de pensar. O que você achou disso padrão? Gostou da minha idéia? Ué....não vai me perguntar o que eu faria com a minha liberdade, se caso....Ficou tão quieto... Pois eu posso lhe dizer:

Em primeiro lugar, soltaria a minha voz. Essa minha belíssima voz que Deus me deu, e que sei, não pode ser desperdiçada. E voaria. Ah, como eu voaria! Com meus amigos, voaria aos bandos, voaria no embalo do vento. Quando estivesse cansado, pousaria junto às copas das árvores. Em outras ocasiões, pularia de galho em galho. Poderia até descer, caminhar feito humano, visitar praças e jardins, beber água no riacho, no chafariz e, eventualmente, até banhar-me numa poça d’água. Liberdade, liberdade, que lindo seria!!! Quanto ao amor, não dizem que ele é importante? Pois bem, este eu também teria. Teria o amor, a amizade, o respeito e a consideração dos meus, da minha espécie. Não apenas iria receber, mas saberia dar também. Ó patrão, eu aqui falando, falando.....já viu?, se fosse realmente possível essa troca, você sozinho,dentro duma luxuosa prisão, imagina o estrago na sua vida, “vivendo” fora do mundo, sem liberdade.... imagina só? Consegue se imaginar no meu lugar? Falando agora apenas na minha liberdade, imagina patrão, eu com certeza seria o pássaro mais feliz do mundo. Meu canto ecoaria por onde quer que eu passasse. Dá-me a impressão de que conseguiria voar até no fim do horizonte e que minhas asas teriam a capacidade de tocar o céu. Vejam só, eu ainda de conversa e você está pensativo....Pensando em que patrão? Pensando em me libertar?

Já é noite e tio Fermino dorme tranquilamente. Recolheu-se cedo nesse dia, pois estava bem cansado, vai ver não foi nem da caminhada, mas da sua fértil imaginação.

Na manhã seguinte, após seu desjejum, o idoso senhor, calmamente de dirige para o pomar que fica nos fundos da sua residência. Olha as frutas, o balançar dos galhos, caminha entre os laranjais e ouve o alegre cantar dos pássaros. Sempre acompanhado da sua bengala, observa-os atentamente e vê que estão com mais um companheiro. Um passarinho diferente, com penas coloridas. Na casa do vizinho, a gaiola agora está vazia, o passarinho prisioneiro havia sido solto naquela manhã.