Todo mundo será culpado

Todo mundo será culpado.

Por Jesuíno da Cruz.

“Todo mundo será culpado!”, afirmou o ex-presidente do Comitê Ordinário de Consolidação Oligárquica (COCO), que também é chefe religioso e principal defensor da Esquivística. Segundo ele, a não-manutenção da vida em sociedade será culpa de todos e, ainda mais, se esta já sair do controle do Órgão Regulador do Coeficiente de Ingenuidade Nacional (ORCIN). Ele diz ainda que “todas as medidas possíveis para que a manutenção da sociedade ingênua foram tomadas”, e que grandes avanços foram realizados na criação do Contrato do Nascimento (ConNasc), onde todos os recém-nascidos em território nacional são obrigados a fazer o exame do pezinho, garantindo assim que o contrato tenha validade, pois “é selado pelo próprio sangue do cidadão”, acrescenta ele.

Vale lembrar que antes do ConNasc, não havia nenhum documento destinado a regular e validar o aceite da criança em se desenvolver em sociedade. “O assunto era simplesmente ignorado”, diz o difusor da Esquivística, “o papel do Estado era simplesmente fazer com que o questionamento que concernia à vida em sociedade fosse apagado, esquecido”. Ele lembra ainda que houve um tempo em que propagandas eram veiculadas na televisão, rádio e internet, como lemas simples, mas eficientes para a época, como “Solidariedade, e gente vê por aí”, além do papel fundamental das religiões, que “cumpriram à risca seu contrato assinado com o Poder”, fazendo com que a sociedade se esquecesse da vida terrena e se preocupasse mais com a vida de além-vir.

Hoje em dia vemos com olhares pasmos essa realidade retrógrada, mas não podemos ignorar o fato de ela ter ocorrido. Com as novas tecnologias de entretenimento, é cada vez menor o número de pessoas que se detêm em pensamentos filosóficos. Segundo ainda o ORCIN, há cem anos, o número de pessoas que dedicavam ao menos cinco minutos por dia para refletir sobre a vida e o mundo ao seu redor era de 85%, um número absurdo e amedrontador se comparado aos 0,5% de hoje. “O estado, naquela época, era de calamidade pública!”, ele prossegue, “[...] as pessoas se detinham em pensamentos sobre suas relações com o mundo ao seu redor, sua família. Na época, esses pensamentos eram ainda considerados rasos e básicos – o que espanta ainda mais –, como o questionamento de salários, a escolha de candidatos políticos, etc., mas ainda assim eram um risco enorme para a saúde do Estado – imagine se, nos nossos dias atuais, as pessoas ainda pudessem pensar dessa forma?”. E a situação era mesmo gravíssima, documentos da época noticiam compartilhamentos de poesias e textos de pensadores em redes sociais, cargos políticos ocupados por não religiosos – pode parecer incrível, mas havia até pessoas que não tinham crenças religiosas, os chamados ateus, extintos há aproximadamente 70 anos da nossa sociedade.

O ex-presidente do COCO, que ontem assumiu o cargo de chefe de Estado, diz que tomará todas as medidas para a manutenção da anti-democracia e para o extermínio do pensamento livre, “ninguém mais voltará a sofrer, ninguém voltará a pensar [...]” garante ele. Na manhã de hoje, fora solicitado o aumento da carga de bombardeio ideológico aos órgãos responsáveis. Os planos de transmissão de pensamentos tendenciosos foram revigorados e o Estado se comprometeu a injetar 288 bilhões de fools (moeda internacional para o pagamento de serviços midiáticos) nas indústrias televisivas e de redes sociais eletrônicas. “Acionei, pessoalmente, o comandante do EMAM [Exército para a Manutenção do Assédio Moral] para que ficasse garantido que todos os desertores da sociedade fossem caçados e mortos, além de pedir-lhe esforço ainda maior para que se evitasse o surgimento de desertores, através de suas eficientíssimas práticas repressivas e desmoralizantes. É meu dever, como enviado de nosso Deus, pai da Esquivística Universal, garantir que ninguém mais sofra com a liberdade. É meu dever, e de meus companheiros de poder, suportar as dores da liberdade e do pensar, da detenção do saber e da vida plena, em benefício de nosso povo e de nosso Estado, para que este esteja sempre livre de todos os males que a consciência pode trazer.”

Os fatos

Há duas semanas, fora descoberto pela Polícia Restritiva Urbana, um grupo de três cidadãos que praticavam o pensamento livre. Com eles foram apreendidos diversos livros, entre eles romances e tratados filosóficos, além do livro da ultrapassada – e imaginária, diga-se de passagem – ideologia do evolucionismo, mais conhecido como “O livro proibido de Charles Calvin” – os livros foram, num esforço para a segurança pública, proibidos há mais de oitenta anos em nossa sociedade. “Ainda não sabemos como aqueles meliantes tiveram acesso a tais materiais, mas estamos investigando e nos parecem ser oriundos de alguma reprodução independente, antigamente conhecida como ‘pirataria’”, nos contou o cabo Geraldo Quessab.

Todos os três foram condenados à morte imediata. Entre eles estava a famosa criminosa Libertá de Pindorama, procurada desde o ano passado pelo crime de filosofia. Segundo as autoridades, esses grupos, ainda que em pequenos números, são os principais incentivadores dos suicídios (prática condenada pela Esquivística, pois liberta o ser humano das penalidades da vida, além de transferi-lo para o sofrimento eternal), das sociedades alternativas e da abrupta fuga e negação dos contratos sociais.

Só no ano passado, o governo eliminou sete comunidades alternativas, assassinando cerca de 5.300 pessoas e também cerca de 100 pessoas que viviam em completo isolamento. “Eles foram presos em flagrante pelos crimes de alteração das regras sociais e de tomar conta da própria vida”, disse o general Sam, responsável pela operação, “a condenação sempre era feita no momento, já que haviam muitos criminosos e a sentença era executada ali mesmo”, acrescenta ele – a pena para ambos os crimes, como já se sabe, é a de morte imediata, excetuando-se em caso de crianças de até três anos, que são encaminhadas para os CLC’s (Centros de Lavagem Cerebral).

Mas nem tudo é motivo de preocupação, basta lembrar que o último ofensor da Esquivística fora capturado e assassinado também esse ano. A Esquivística, que prega basicamente, nas palavras do atual chefe de Estado, “[...] esquivar-se de toda e qualquer culpa, sempre fazendo com que esta recaia no próximo.”, é o regime-religião (evolução na forma de poder, que fundiu os mecanismos de controle de ambas as instituições para benefício do povo) oficial do Estado e está presente em 99,9% dos lares nacionais: “e esse número não para de aumentar”, nos lembra ainda nosso chefe de estado, em razão do extermínio sistemático dos dissidentes promovido pelo Exército e Polícia nacionais.

Como vemos, nosso estado está em boas mãos. Estamos caminhando rapidamente para uma sociedade cada vez mais mecânica, cega e feliz: estamos experimentando tudo o que nossos antepassados quiseram para nós, e eles provaram terem feito as escolhas certas. Encerro essa matéria com mais um grande ensinamento de nosso Senhor: “Mais vale perder a liberdade que perder tempo em pensar; mais vale passar os olhos num texto do que digeri-lo”. Espero que tenha sido uma passada de olhos agradável. Boa noite e até a matéria de amanhã.

Jesuíno da Cruz é formado em Alteração e Criação de Fatos pelo INMM (Instituto Nacional de Manipulação de Massas). É redator chefe do Jornal Único Nacional há dez anos.

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 21/09/2012
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