Naquela terra, em outro tempo

Ela espreita pela porta enquanto o pai faz os acertos finais com o noivo.

Está contente, não há sonhos irreais, a vida transcorre imutável e seu pai, diferente de muitos outros, não a forçou a casar com quem ela não escolhera.

É certo que a escolha foi dele, naquele ermo perdido onde vivem e onde as relações ainda são de clãs.

Ela não conhece outra coisa, mas o pai embora deixasse trancorrer uma certa decepção por não ter um filho macho pra cuidar da terra - bem precioso, se consolava por ter uma filha que o ajudava em tudo, fazendo muito serviço que não consideravam 'coisa de mulher' naquelas paragens. Então ela foi à escolinha da vila e se mostrou muito esperta. O pai deixou a menina aprender, afinal ele precisava de alguém que fizesse contas e anotação e entendesse os papeis da terra.

Nas relações fechadas de casamentos entre primos pra não perder a terra ou dividir heranças, ela não perdeu, afinal o primo, diferente dos homens do lugar, até estudou e com ele, ela pode ter alguma conversa, como transcorreram naqueles últimos meses em que se escreviam e ele até arriscou uma visita de tarde, sob as vistas do tio.

Só há um problema: ela vai morar numa vila longe, na terra dos parentes e do marido; cresceu ali, é mimada, paparicada até pelos vaqueiros e mulheres da casa, pois ficou órfã ainda pequena e todos cuidaram dela. Ela já sente uma antecipada saudade daquilo e do trabalho que realiza para o pai, nas contas e anotações da fazendola. Não teve tempo de conversar isso com o noivo, e sabe que pra onde vai, a terra e a casa são dirigidas pela matriarca da família e ainda não entendeu o papel que terá naquele balé.

Cisma nisso, se embalando na rede, enquanto dirige olhos enamorados para o vestido de noiva que a aguarda, pendurado num canto e envolvido por folhas de papel de seda.

O pai a chama e ela vai até a sala. Ele faz preleções, mas ela entende que falta algo que só a mãe poderia conversar, então se sente meio alheada, e o que o pai diz a faz sentir-se como alguém que já foi.

Ela já não é daquele lugar e não se sente de nenhum outro lugar. É estranho. Vai para um lugar do qual sempre ouviu falar desde menina, mas sente-se perdida como se fosse já estranha ali.

Pensa no noivo e um assomo de afeto, mexe-lhe com o coração. Sabe do amor dele por ela, mesmo que discreto e contido. Se sente saudosa de repente. Saudosa desta terra onde sempre viveu, saudosa do noivo que pouco vê e com quem fala mais por cartas... receosa do que a espera...

… a princesa encarcerada no castelo a indagar...

Não sabe como, lembra dessa melodia cantada pela ama-de-leite pra ela quando pequena. Ela se sentia encarcerada, queria algo, algo daquilo que lia nos livros e agora sente receio, temor, saudade mesmo daquela casa, daquele terreiro, onde galinhas ciscam agora.

Sente os olhos encherem d'agua, entra no quarto e abarca tudo com olhos de amor.

Passa as mãos na parede, se abaixa e alisa o chão de ladrilhos feitos pelo seu bisavô.

Beija o chão, beija as paredes uma a uma, alisa a porta, a janela, abre os braços, toca a cada parede e se abraça, sentindo que abraça a casa.

Após essa despedida, sente um certo alívio, e se senta na sua cadeira de balanço, recomeçando o crochê pra suas toalhas de banho. É prática, uma moça que lê, escreve, faz contas e sabe que as moças das redondezas não tiveram essa instrução, então volta ao seu trabalho e conta os pontos da linha amarela lustrosa que enfeitará uma toalha. Linda toalha … e ainda sabe sabe fazer contas e escrever uma boa carta.