Uma aula sobre casamento

Sentados no terraço, eles conversam. Pai e filha.

Ele, meio enrolado numa manta, convalescente da última internação, fala em tom pausado, puxando o ar.

Ela gosta daqueles momentos com o pai, mas se preocupa com o estado de fraqueza em que ele ainda se encontra. Quer que eles entrem, mas ele parece decicidido a continuar nesse papo, e sorri pra ela com olhar carinhoso, enquanto a afaga com as mãos ossudas de veias salientes, que ela conhece tanto e que lhe afofava o travesseiro, ao dar-lhe boa-noite, durante a infancia. Bons tempos...

Não, ela sabe que foram duros, a morte do irmão pequeno e depois o adolescente, quebrantaram o coração do pai e da mãe.

Foi um terremoto, um redemoinho e ela tem a noção do que eles sofreram, porque ela sofreu muito, já que era tão apegada o irmão mais velho. Do menor pouco lembra, ela era bem pequenina.

Sobreviveram, ficaram juntos e tanto os pai quanto ela, sofreram muito. A mãe demorou mais a se recuperar e ela contou mais com o pai que, se fazendo de forte, emergiu mais rápido daquelas tragédias.

São muito unidos os três, mas pelo consolo e presença recebidos do pai, houve então uma maior união entre eles, após essa tragédia.

Ela é a querida do pai e da mãe. Ama aos dois, cresceu obedecendo e apoiando também.

Moça, namorando firme, formada, trabalhando e fazendo uma segunda faculdade, vê o pai voltar ao assunto que tem sido a tônica das suas conversas no último ano, depois que ele piorou mais.

Filha, porque não noivar?

Mas, pai, pra que a pressa? Será que é ele mesmo a pessoa com quem eu devo casar?

Filha, ele é um rapaz bom serio, vocês se gostam, eu nunca te diria pra casar se não tivesse certeza de que ele é um homem de bem.

Certo, pai, mas eu não tenho pressa, quando terminar este outro curso...

Não filha, ainda são mais dois anos...

Pai, porque a pressa? O senhor sempre incentivou estudos, estou fazendo outro curso ...

Filha, não desgosto e tenho orgulho sim das sua formação, e dessa outra que vem, mas sabe, eu 'tou muito doente...

Pára pai, deixa disso, o senhor está se tratando..

Filha, eu não sou eterno e já casei velho, eu sou um pai avô e você já é adulta. Eu nunca incentivaria antes, ia querer mesmo que tu te formasses, gosto disso, mas sabe...

Não vai falar de novo de doença, pai.

Não, filha, mas sabe, tu és única hoje, os pais morrem e todo mundo precisa pertencer a alguém.

Ela olhou espantada pra ele, sem entender o que ele dizia. Pertencer?!!

Sim, filha, pertencer. Ninguém deve ser solto no mundo.

Mas eu não tou solta, tenho vocês...

Não falo de pai e mãe, falo de companheiro, amor, casamento.

Pai, eu caso um dia.

Quero ver isso, antes de morrer.

Ela atalhou nervosa, não gostava daquilo, afinal já tinha visto muita morte. Ela percebe a agitação dele ao imprimir um tom de urgência à conversa. Seu coração se aperta. Aquele homem grande, a quem ela puxou na estatura, de repente lhe parece um velhinho curvado.

Pai, relaxa...

Repito, ninguém deve viver solto. Ele te ama e pelo que eu conheço minha filha, ... e a gente deve pertencer a alguém.

Sim, pai...

Casar, filha, dá a sensação de pertencimento. De se ser de alguém – e ele levantou a mão pra cortar o que ela fosse dizer.

Pais e filhos são diferentes. Casar é pertencer, é estar ao lado e é isso que eu quero pra ti, antes de morrer.

Ela quis falar, mas deixou pra lá, afinal o seu maior temor era mesma que ele não a levasse ao altar no casamento e ela não era criança pra não perceber que além de idoso, ele estava muito doente. Se calou, engolindo em seco, e disse pra desanuviar o clima.

Falamos sobre em casamento, vou aceitar.

O velho pareceu remoçar. Até disse que estava com fome, queria um lanche. Coisa rara.

Oito meses depois, ela casou, levada ao altar por um pai brilhando de orgulho. Ela estava feliz. Casava com seu amor e calava a preocupação do pai.

Dois meses depois o pai morreu. Hoje, passados alguns anos, ela nunca se arrependeu e se sente em paz, porque ele morreu tranquilo.

E hoje ela entende a sensação de pertenciemento. Está órfã de pai e mãe.