Crime
– Diga, homem! O que é que você carrega aí?
– Ora, não é nada, seu guarda. Coisa minha, pouca, de consumo só…
– Ah! Mostre o peito!
– Mas, senhor…
– Ande! É uma ordem!
O homem abriu o peito e o guarda viu aquela quantidade imensa de Amor. Quanto? Incalculável a olho, mas se via que era fácil ali uma prisão perpétua. Pobre homem! Teve de encostar-se num muro, mãos na cabeça e uma revista indiscreta.
– Para quem leva tanto?
– Para ninguém. Carrego comigo, só.
– Impossível! Alega consumo próprio?
– Sim! Quer dizer…sim, é isto mesmo.
– Mas que absurdo! Já haveria o senhor morrido! Uma overdose fulminante já teria arrebatado teu coração!
– Mas lhe digo, senhor: quase que penduro as chuteiras por esses dias – e já não me fora a primeira vez que aconteceu…coração forte!
– Ou doente…
Os dois ficaram em completo silêncio. O guarda tinha, no fundo e no momento, um pouco de pena daquele sujeito. Tão bom, tão ciente de si e, ainda assim, um viciado! Prosseguiu com o protocolo:
– O senhor está ciente de que foi detido em flagrante por porte excessivo de Amor?
– Sim! Estou ciente!
– O que o senhor declara condiz com a condição de vício. O senhor se considera um viciado em Amor?
– Talvez…
– Meu senhor, lhe digo: tu és um viciado em Amor!
– Mas, seu guarda, não tenho certeza! Carrego todo esse Amor agora porque…porque…bem, não sei! A verdade é que nunca havia eu pensado nisso.
– Homem! Deixe disso! Digo pela minha longa e própria experiência, já vi inúmeros casos semelhantes ao seu – exceto pela quantidade de Amor apreendida! Você é, ou rezemos para que apenas esteja, viciado em Amor!
– Ai, meu deus! Que pelo menos eu não seja, mas esteja! O senhor tem toda a razão, seu guarda.
– É, sejamos positivos. Mas…
– Mas o quê?
– Ora, serei franco. Pela pouca conversa que tivemos até agora, já consigo inferir que todo esse Amor é acúmulo, coisa até da tua infância.
– Será?
– Mas é claro! Deixou de dividi-lo e reteve-o consigo cada vez mais. Isso, aliás, agrava ainda mais seu delito…
–Ai! Mas, seu guarda, eu juro que tentei passá-lo, dividi-lo com os alguéns, enfim, tentei fazê-lo pequeno, controlável. Mas parece que me não sai do peito!
– Mentes!
– Não minto! Acha que é-me fácil? Mais de uma tonelada, quilos quase infinitos que carrego. Doem-me as costas, estou já meio corcunda…
– Vê-se!
– Pois então! Até há pouco foi que tentei, mas passou descrido por outro coração. Daí que inchou e, agora, pesa ainda mais aqui dentro.
– Olhe, homem, que até lhe acredito, mas sou homem cumpridor da lei e…
– Eu entendo, seu guarda. O senhor pode me prender que eu entendo…prefiro.
– Está completamente seguro disso?
– Sim! Claro que sim!
– Já vi casos em que, ainda que menos graves que o seu, a sentença fora prisão perpétua em regime de sofrimento, além disso…
– Puxa, isso me anima!
– Isso não são horas para ironia! O senhor respeite minha autoridade!
– Não pretendi ser irônico e me desculpe! Mas acredita-me! A notícia que o senhor acaba de me dar realmente me anima!
– Faço mal em querer saber o porquê?
– Mal nenhum, seu guarda! É que dessa pena que o senhor citou, eu já cumpri quase vinte e três anos. Por isso, já que meu caso é dos mais graves, tenho a esperança de ser condenado à pena de morte.
– Entendo. É provável, para seu grado, devido à sua condição. Agora, entre no carro…quer que eu lhe afrouxe as algemas?
– Nossa! Não as havia percebido!