Apaga a luz... Desliga o mundo...

Das Dores olha para o botão com desenho de seta no aparelho de som a menos de um metro de distância, mas parece tão longe, tão inalcansável, que sua vontade -- repleta de agonia -- é abalada pelo desânimo.
 
A televisão está ligada, querendo hipnotizá-la com os argumentos hipócritas de apresentadores fazendo-se de santos. Ela muda de canal mas só encontra, respectivamente a cada tecla pressionada no controle remoto:
 
... Futilidade;
Troca de canal novamente... Sensacionalismo barato;
Troca de canal novamente... Tristeza desesperada usando máscara de felicidade;
Troca de canal novamente... Pessoas que só querem aparecer;
Troca de canal novamente... Modas que nada dizem;
Troca de canal novamente... Bundas e peitos;
Troca de canal novamente... Mais bundas e peitos;
Troca de canal novamente... Artistas com merda na cabeça;
Troca de canal novamente... Apresentadores hipócritas;
Troca de canal novamente... Violência;
Troca de canal novamente... Mais violência;
Troca de canal novamente... Mais violência.
O telefone toca. Deve ser alguém chamando Das Dores para uma balada. Mas ela não quer voltar para casa novamente, durante a madrugada, com aquela mesma sensação de vazio no peito -- mais um tempo perdido em troca de algumas bebidas que nada trazem de útil à sua vida.
 
Ela não atende.
 
De repente, em sua troca incessante de canais, ela se depara com um filme sobre um músico. Filmes sobre música emocionam Das Dores. Especialmente sobre música clássica. Mas ela logo desliga a TV. Porque todas as visões fantásticas dos filmes não são capazes de descrever o que ela sente -- em seu interior nascem e morrem universos em explosões infinitas.
 
Tenta se refugiar num livro, mas até os livros foram corrompidos, inexoravelmente, pelos costumes burgueses e capitalistas de uma indústria interessada apenas no lucro, tirando a vida da arte literária, assassinando o que ela tem de mais valor: sua alma. Ora, não é de se admirar que hoje os livros, como esse que ela agora folheava, não passam de objetos de consumo supervalorizados pela imagem midiática da fama. A arte cinematográfica é um exemplo disso: são raros, muito raros, os filmes que são criados por visionários sensíveis aos livros em que prestam homenagem. E mais raros ainda os livros que merecem alguma homenagem cinematográfica.
 
Das Dores agoniza em seu desespero, sentindo que nada pode lhe dar mais calma nesse momento do que a caixa de bombons que ela agora abre. A luz acesa da sala lhe causa irritação, e a lembra apenas de que precisa de paz e sossego. O mundo a sua volta é barulhento demais, e ela só precisa ouvir uma música clássica.
 
Nesse momento, ela sente o quanto é pequena perante tudo o que acontece ao seu redor. Das Dores não pode mudar o mundo. Nesse momento ela não pode ajudar nem a si mesma!
 
Ela não pode varrer toda a areia do deserto.
 
Das Dores pega mais um bombom.
 
Apaga a luz.
 
Fecha os olhos e desliga o mundo em sua mente.
 
E aperta o play do aparelho de som...
Sr Arcano
Enviado por Sr Arcano em 27/09/2012
Reeditado em 22/04/2016
Código do texto: T3903836
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