Uma ideia sobre Pessoa, o poeta

Fernando Pessoa é um poeta magistral. É dele o pensamento “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. E como ele criou e assumiu a arte de sua criação de uma maneira inimaginável! O que para alguns pode parecer demência, para mim é de uma travessura incomum. Eis uma de suas frases apoteóticas: “Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.”

Dada a sua inventividade, vivemos apaixonados por seus heterônimos/personagens há mais de meio século depois de sua morte. Perdão, não concebo a morte. O poeta, pois, continua vivo. Transportamos as nossas dúvidas para o seu imaginário e internalizamos as dele para a nossa inconsciência e/ou consciência. Sonhamos e vivemos seus sonhos, concordamos e discordamos de suas crenças e descrenças. Duvidamos de sua solidão. E invejamos a simplicidade de sua poesia e grandeza de pensamento.

Nasceu menino e morreu criança. Foi homem, também, e amou, é claro – um amor calmo, maduro e resistente. Se foi um eremita, ateu – não importa, mas foi livre porque livre é o homem possuidor de seu pensamento e a literatura, como diz um heterônimo seu, é a maneira mais agradável de ignorar a vida ou o esforço para torná-la real.

Falar sobre Pessoa ou traçar ideias a respeito de seus heterônimos é uma tentativa vã de se explicar o enigmático, mas é deliciosa de se praticar. Hoje falemos de Caeiro, o mestre dos heterônimos, homem simples do campo – o guardador de rebanhos – sua poesia é antirreligiosa, ele diz não crer em Deus (mas eu duvido) porque nunca o viu, pois se Deus quisesse que ele o conhecesse teria se apresentado ele-próprio; é antimetafísica e antifilosófica.

Para ele o importante é ver e ouvir “A sensação é tudo e o pensamento é uma doença”. Ele não tem filosofia, mas tem sentidos. O poeta não credita seus sentimentos ao pensar, antes o refuta e segue afirmando que o essencial é saber ver, saber ver sem estar a pensar, saber ver quando se vê, e nem pensar quando se vê. Nem ver quando se pensa.

Mas eu penso, nesse instante, a respeito de um poema de Caeiro, sobre o qual recaem minhas crenças pessoais. Diz o texto que em um dia de primavera o poeta teve um sonho e nele encontrou Jesus, o menino Jesus, e ele era igualzinho a todas as crianças e fugira do céu porque lá era tudo tão sério, o menino enquanto homem estava sempre a morrer pregado a uma cruz, não tinha sequer um pai e uma mãe. O seu pai eram dois – O José, que não era pai dele e o outro uma pomba feia e não pertencente ao mundo. A mãe dele, coitada, não fora amada antes de seu nascimento e comportava-se como uma mala. O menino, ainda assim – sem conhecer o amor de um pai – deveria pregar a bondade e a justiça. Por isso ele fugiu, roubou três milagres e com eles fez com que ninguém soubesse dessa travessura, tornou-se eternamente humano e menino; e deixou um Cristo eternamente na cruz a servir de modelo.

Hoje vive na aldeia com o poeta, é uma criança de riso natural, que limpa o nariz ao braço direito, colhe as flores, atira pedras aos burros, rouba a fruta dos pomares e tem medo do latido dos cães. Ao poeta ensinou tudo, principalmente a olhar para as coisas. Uma vez ou outra fala mal de Deus e o chama de velho estúpido e doente, conta que a Virgem Maria gasta seu tempo na eternidade a fazer meia e o Espírito Santo a coçar-se com o bico. E o céu para ele continua tão estúpido quanto a Igreja Católica; e Deus, infelizmente, não percebe nada das coisas que criou.

Esse menino que adormece nos braços do poeta é tão humano e divino, que sorri e brinca e está sempre a andar com o autor desses pensamentos; vivem juntos e se dão tão bem que nem precisam pensar um no outro, pois que um dá a mão ao outro e gozam, assim, de um segredo comum que é saber que não há mistério nas coisas e que tudo vale a pena. Esse menino Deus dorme na alma do poeta, brinca com os seus sonhos e sorri para o seu sono.

Esta é a história do Menino Jesus, de Caeiro, e ele na humildade própria de um pastor se pergunta “por que razão não há de ser ela mais verdadeira que tudo quanto os filósofos pensam e as religiões ensinam?”.

Pessoalmente, não vejo razão alguma – porque Deus não está nos altares nem nos terços bizantinos nem mesmo numa palavra proclamada a exaustão.

Ele está aqui em nossas aldeias, nem precisamos pensar nele, como diz Caeiro. Basta que o vejamos e nos tornemos uma vez mais meninos. E ele vai morar por toda a eternidade conosco.

RosalvaMaria
Enviado por RosalvaMaria em 30/09/2012
Reeditado em 15/12/2016
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