O heresiarca

Se nos dermos ao trabalho de contemplar o espaço de todas as possibilidades, nos depararemos com uma infinitude extraordinária, e nos surpreenderemos com o fato de que a imensa maioria das pessoas se aglomere nos mesmos pontos desse espaço. Tal constatação sugeriria haver algo especial em cada um desses pontos de acumulação, no entanto, nenhuma análise posterior viria revelar a existência de qualquer característica peculiar a eles, exceto o fato de terem sido preenchidos ao acaso, inicialmente; algum ponto do espaço de possibilidades tinha que ter sido ocupado.

Tendo constatado que todos se aglutinam de maneira irracional, seja física e espacialmente, seja em torno de ideias, cabem apenas duas alternativas: misturar-se ao rebanho e se posicionar no meio da multidão, seguindo os passos dos que lhe guiam cegamente e a esmo, ou tentar agir racionalmente, não à maneira de um ungulado, mas como um homem, analisando cada uma das possibilidades, e se posicionando sempre de uma forma justificada.

Estranha e curiosamente, nessa nossa era de trevas, os que agirem assim, como homens, serão vistos com estranheza, como iconoclastas. Qualquer posicionamento distante do bando induzirá reações de desconfiança, talvez até eventuais punições.

Embora qualquer decisão consciente, qualquer escolha abalizada, justificada por uma análise racional prévia devesse constituir a norma, o modo de ação de todos os homens, agimos como quadrúpedes em um enorme bando, forçando-nos, a nós mesmos e aos outros, a diluir nossas personalidades, a abandonar uma existência individual e consciente em prol de uma caminhada cega e obtusa em comunhão com o bando.

Os que se recusam a agir assim, como ungulados, os que insistem na própria humanidade, na existência enquanto indivíduos, cairão, inexoravelmente, na pecha de hereges. Como o espaço de possibilidades é imenso, e como o rebanho se aglutina apenas em uns raros e ralos pontos, as decisões racionais sugerirão, quase exclusivamente, posicionamentos diferentes dos do bando, e, portanto, heréticos.

Tal constatação, bastante clara e inequívoca, não me deixa opção que não seguir meu destino de heresiarca, trilhando novos caminhos à maneira dos homens.

Sou um heresiarca porque ilumino e traço meus próprios caminhos, me recusando a viver como um ungulado, a seguir um rebanho estúpido e cego, como se fosse um gnu, ou qualquer outra besta quadrúpede.

Aos que conseguirem erguer a cabeça por sobre o rebanho posso afirmar que há beleza no horizonte, mas advirto que o eventual afastamento do rebanho acabará por se revelar definitivo. Ao se afastar do grupo, os que o fizerem terão uma clara noção do espaço ao redor, das belezas que o mundo oferece a uma mente livre; impossível retornar conscientemente à prisão autoimposta, constituída pelos corpos da multidão que cerca e cerceia os do rebanho.