Sobre a utilidade de um graveto na vida social de um macaco

Moreno, 1.60, olhos pequenos, daqueles que ficam apertadinhos quando a pessoa sorri, nariz comum, barriguinha proeminente, cabelos, ou os poucos fios que lhe restam, levemente esvoaçantes. No rosto, constantemente suado, um certo ar indecifrável, que tanto poderia ser analisado como apalermado, quanto irônico.

Como dizia um grande filósofo javanês, profundo conhecedor das essências humanas, a respeito deste personagem: “Ele se fingia de morto para atacar o coveiro...” Mas eu, sinceramente, até hoje não consegui decifrar quem foi exatamente essa pessoa – a qual, por motivos óbvios, chamaremos aqui somente pelo seu apelido: Zuza. Na verdade, nem sei se ele era uma pessoa realmente. Imagino que tenha sido um personagem fictício, criado não sei como, nem sei por quê, mas que estava ali para ser lido e até interpretado. Mas como interpretar alguém tão indecifrável? Penso até que existem ou existiram personagens como Zuza – O Grande Mentecapto, de Fernando Sabino, por exemplo – mas nunca, nenhum deles poderia servir de parâmetro para ilustrarmos nosso personagem maior. Para você, caro leitor, ter uma idéia, nosso herói era formado em Filosofia, Teologia, Pedagogia, Psicologia e todas as outras ‘ogias’ que se pode imaginar. Falava fluentemente o idioma inglês, o espanhol, o francês e até o javanês, como a maioria de seus semelhantes (algumas ‘pessoas’ que faziam parte de um grupo de amigos de Zuza que, provavelmente, também não eram deste mundo. Eram mais ou menos do mesmo estilo, farinhas do mesmo saco, mas ainda assim, possuíam alguns pontos que divergiam da essência (?) de Zuza. Poder-se-ia dizer que eles se aproximavam mais das características humanas). Nosso personagem em questão, durante a sua existência, costumava viajar com uma certa constância. Conhecera os mais variados e longínquos lugares, travara amizade com as mais diversas pessoas, desde a artistas de teatro, escritores, pintores, até a grandes chefes (de Estado, de cozinha, de tribos indígenas, de gangues suspeitas...).

Mas, apesar de toda essa bagagem cultural e de seu grande círculo de amizades, Zuza jamais conseguiu um trabalho sólido, daqueles que poderiam torná-lo bem sucedido profissionalmente. Mas creio até que ele nunca fez muito esforço para que isso acontecesse. Seu passatempo predileto? Tomar banho de mar. Ah, isso para Zuza era algo tão sagrado quanto o mais sagrado para o mais fiel dos religiosos. Todos os dias, antes e depois de (acho que até durante) qualquer atividade estressante, que no caso de Zuza nem sei se esse tipo de atividade já fez parte de sua vida, ele sempre dava o seu mergulho. Inclusive, andava sempre com a sua inseparável sunguinha vermelha por baixo das calças. Sua idade? Bem, biologicamente falando, quando o conheci, deveria ter entre cinqüenta a cinqüenta e cinco anos. Mas, como os personagens geralmente não têm idade, prefiro não me ater a esse tipo de informação. Aliás, falando em cronologia, a mãe de Zuza sempre dizia que desde criança ele tinha sido assim, digamos, diferente. A mãe também nunca soubera decifrar seu próprio filho e vivia dizendo que, inclusive, no momento em que ele nascera, ao receber as palmadas de ‘boas-vindas ao mundo’, assim como um outro personagem da Literatura, o pequeno Zuza não chorou, e sim, soltou uma enorme gargalhada.

E depois de seu nascimento... o que ocorreu na vida de Zuza? Ou melhor, como Zuza foi ocorrendo na vida? Bem, vamos aos fatos. Na escola, fazia amizades facilmente, uma porque ele simplesmente ignorava que era ignorado pela maioria, e outra, porque nunca fora capaz de negar a ninguém um pedaço do seu enorme sanduíche de pasta de abóbora misturada com atum que ele mesmo preparava antes de sair de casa. E tampouco ele era capaz de recusar um lanche oferecido (e nem os que não eram) por seus colegas.

No intervalo, entre uma aula e outra, Zuza sempre procurava fazer uma ‘boquinha’, o que deixava os professores profundamente irritados. E a irritação não era somente pelo cheiro daquela pasta que inundava o ar, mas também pelo barulho que Zuza ia fazendo com a boca enquanto mastigava. Era um barulho que, assim como o seu autor, não era possível de se decifrar – uma mistura de ‘hum’, ‘mmmm’ e ‘nham’ e ‘rrram’... – e que vinha acompanhado por uma das mãos que ele colocava em frente aos lábios como se estivesse com um microfone invisível e aqueles sons fossem a narração do que ele estava sentindo... Coisa de louco! Mas Zuza não se preocupava com a irritação dos professores. Por diversas vezes, até preparava uns dois ou três lanchinhos extras para presenteá-los. O que nunca se soube era se realmente Zuza estava zombando de seus mestres ou se a sua intenção era a de realmente lhes fazer um agrado.

Como eu já informei, Zuza deveria estar, na época em que o conheci, na faixa dos cinqüenta anos, ou um pouco mais, e esta história poderia ser iniciada a partir de qualquer época da vida de Zuza, já que sua existência sempre fora tão recheada de acontecimentos incomuns... Mas iniciemos sua epopéia a partir de 1960, ano em que nosso personagem conheceu Naná, ou ano em que Naná apareceu em sua vida, tanto faz.

Naná era como Zuza, ou um pouco diferente... Ou toda diferente... Ou toda igual... Quem é que sabe? Considerada como indecifrável, e por seu, digamos, ar ‘nonsense’, talvez até fosse conhecida por alguns como Rainha das Gafes, ela jamais se preocupou com o que diziam a seu respeito. Aliás, jamais tomou conhecimento de alguns codinomes a ela dirigidos. E se viesse a saber, com certeza, achá-los-ia injustos. A moça costumava dizer que jamais cometera uma gafe em toda a sua vida... Não era ela quem costumava ser inconveniente e, sim, as pessoas que se sentiam constrangidas com seus comentários altamente despretensiosos... Fisicamente, Naná se diferenciava completamente de Zuza. Nossa heroína era alta, magra, cabelos lisos, longos e loiros, e estava sempre vestida com uma certa elegância. Talvez, em outra história, Naná e Zuza fossem dois personagens que nunca viessem a se conhecer e se viessem, talvez nunca se sentissem atraídos um pelo outro. E realmente, nesta que lhes conto, eles nunca pareceram sentir algum tipo de atração recíproca, pelo contrário. Naná e Zuza nem conversavam entre si. O que se notava era que ambos não se davam conta da existência do outro... E, por diversas vezes, parecia também às pessoas que eles chegavam a se desmaterializar quando estavam no mesmo ambiente ou cruzavam o mesmo caminho. Ah! Esqueci-me de dizer que Zuza e Naná viviam, nessa época, na mesma casa, ou melhor, no mesmo apartamento. Eles e mais centenas de pessoas que por lá passavam diariamente. Ninguém nunca soube dizer ao certo como Zuza a conhecera, mas segundo algumas pessoas de sua família, ela aparecera, juntamente com ele, numa terça-feira de carnaval...

Flash-back...

Era noite de Reveillon. Toda a família de Zuza estava reunida para comemorar a passagem do ano. Combinavam ir ao Farol da Barra para ver os fogos. A casa enchendo de gente: amigos, parentes vindos de longe, amigos (desconhecidos) de Zuza... Todos bebiam e comiam... Desceram a ladeira até a praia... Fogos... Gente bonita... Zuza com uma taça na mão, sempre cheia de champanhe, vazia por pouco tempo, cheia novamente... A pequena peça de cristal, juntamente com outras tantas, havia sido presente de casamento de sua mãe. Porém, naquela época, esta fora a única que restara. ‘Cuidado com minha taça’ – dizia a todo o momento a mãe ao filho. E Zuza, enchendo e esvaziando sua taça de champanhe... Final de festa, todos voltaram para casa, menos Zuza. ‘Pôxa, era a última taça que restava’ – ainda iria lamentar a mãe durante semanas...

Já havia passado mais de dois meses e, numa terça-feira de carnaval, família reunida novamente, queria botar o bloco na rua, todos fantasiados, novos desconhecidos dizendo serem amigos de Zuza, todos entrando e fazendo parte do grande bloco... Eis que surge o nosso herói. Chapéu mexicano. Cantando marchinhas carnavalescas. Ao seu lado uma bela loira, que já foi entrando e se reunindo ao grande círculo dos amigos de Zuza. Numa das mãos de Zuza, o que se via? A taça... Detalhe: cheia de champanhe... O que ocorrera naquele momento poder-se-ia comparar a um fato histórico. Era praticamente um Camões se salvando de um naufrágio com os manuscritos de Os Lusíadas... Isso pelo menos para a mãe de Zuza, com lágrimas portuguesas nos olhos, abraçando emocionada a taça e depois o filho, é claro! Quanto à moça loira que adentrara o recinto juntamente com Zuza, ninguém perguntou quem era. Apenas a aceitaram, assim como aceitavam a Zuza. E assim Naná passou a morar naquele lugar. (Fim do flash-back).

Zuza e Naná viveram, então, naquele apartamento, como já disse, como meros desconhecidos durante anos. Até que um fato, inexplicavelmente estranho, ocorreu. Fazia quase três anos depois da chegada de Naná àquela casa... Época de Quaresma. Zuza, altamente religioso, profundamente católico, guardava todas as quartas e sextas-feiras. Abstinência total de carne. A época era totalmente vegetariana, somente paz, amor e incenso... Nada de música, barulhos... Nada de excessos alcoólicos... E o mais radical: nada de estranhos! A única exceção era para os estranhos que já freqüentavam a casa antes do início do período quaresmal. E foi exatamente nesse período que Zuza e Naná se falaram pela primeira vez. Pelo menos foi a única vez que viram Zuza se dirigindo a Naná...

A avó de Zuza havia falecido há dois dias. Todos ainda estavam muito enternecidos.

Era a primeira noite do terço. Sugestão de Zuza. Ele aprendera numa de suas imersões religiosas que, todas as vezes que alguém morria, durante uma semana inteira deveriam se rezar o terço em intenção do finado. Encarregou-se de tudo, inclusive dos comes e bebes. Naquela noite, a primeira do terço como já disse, saíra para comprar mais salgadinhos e, como demorava para voltar, sua mãe, achando que se tratava de mais um daqueles sumiços do filho, convidou Naná para iniciar as orações. A moça já havia dado mostras à dona da casa, em outras ocasiões, de que conhecia todas as orações católicas. Quando Zuza voltou, já haviam iniciado. Compenetrado, sentou-se e começou a fazer suas orações pessoais também em silêncio e de olhos fechados. Todos permaneciam sentados numa salinha; havia muitas senhoras idosas e muitos membros da família (tias, tios, primos), vizinhos e todos os estranhos íntimos ou íntimos estranhos, como queira...

Muito concentrada, Naná iniciou. Ave-Maria cheia de graça...

Naquele instante, Naná percebeu que um inseto entrara voando pela janela. Um inseto – como ela diria depois – ‘asqueroso, nojento, horripilante’... Esqueci-me de informar que Naná carregava dentro de si um pavor incomensurável por tal inseto... Mas ninguém sabia disso, até aquele presente momento. O tal inseto era uma barata – daquelas voadoras e enormes.

Num primeiro momento, Naná tentou manter a pose, afinal, ninguém se mostrara incomodado com ‘aquilo’. Todos, inclusive, estavam com os olhos fechados, totalmente concentrados na oração que ouviam. Bendita sois vós entre as mulheres... Mas não havia como ignorar aquele monstro... A dona da casa percebeu a inquietação de Naná, não obstante, em se tratando dela, tudo poderia ser normal ou não... Imaginou que talvez fosse um tipo de emoção e chegou a achar bonito.

Uma das mulheres presentes, uma tia de Zuza, que igualmente já havia percebido a presença do ‘dinossauro’, começou, também a se mexer no sofá... O inseto começara a voar desgovernadamente pela sala. Bendito é o fruto... Naná olhou para a tia de Zuza. Ninguém mais estava preocupado com aquele bicho, só ela e a tia. Esta também estava tensa e acompanhando os vôos da intrometida... Do vosso ventre... A barata voando... Jesus... Batia suas asas no lustre... Ninguém mais percebe?... Santa-Maria... A barata fizera um vôo rasante... Mãe de Deus... Ela sumiu... Rogai por nós... Onde está?... Pecadores... O inseto desaparecera. Escafedera-se. Olhares entre Naná e a tia de Zuza foram trocados... Agora e na hora... Olharam-se novamente, como se a qualquer momento fosse acontecer uma catástrofe... De nossa morte...

‘Ela está no seu cabelo!’ – a tia fizera um sinal com as mãos e os lábios...

_ Amémmmmmmmmm!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Naná dera um berro sepulcral e saíra correndo, feito louca, rumo à cozinha, balançando a cabeça para todos os lados e embaralhando os cabelos com as mãos. A tia, que estava com um bebê no colo, e achando que o ‘animal’ havia se arremessado em sua direção, saiu também gritando, gesticulando e se descabelando. O bebê, a esta altura, sabe-se lá como, fora parar no colo do irmão de alguém desconhecido. As duas não paravam de gritar e se descabelar. As pessoas presentes olhavam mudas e atônitas à cena. Mas as mulheres não paravam de gritar.

_ Está no meu cabelo agora!!!!!!

_ Não, está no meuuuuuuuu!!!!!!!

_ Nas minhas costas!!!!!!

_ Não, nas minhas!!!!!!!!!!!

_ Aiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!

_ Socooooooorrrrrrro!!!!!!!

_ Cheeeeeeeeeega!!!!!! – era Zuza pondo um ponto final à histeria – Já matei a barata, Naná!!!!!!!!!!

Silêncio mortal.

Zuza havia saído correndo para matar a barata ou também havia se assustado? Havia saído em socorro de Naná ou da tia? Ou ainda, estaria indignado porque, num momento como aquele, as duas aprontavam aquele escândalo? Difícil dizer... Zuza nunca fora de tomar atitudes como aquela; inclusive, nunca matara um inseto em sua vida... Dizia que os insetos também faziam parte do Universo e qualquer mal feito a eles desequilibravam a harmonia do mesmo... Como ter certeza do motivo daquele rompante, então? Ele nunca ligara para Naná... Mas ele pronunciara o seu nome... Era a ela que ele queria acalmar... Nunca havia feito isso antes, nunca nem havia se dirigido à moça... Naná, naquele momento, olhou fixamente nos olhos de Zuza... Era a primeira vez que isso acontecia, e era também a primeira vez que se olhavam em público... Em seguida, Naná olhou para a mulher, as duas olharam para o chão e viram a barata desfalecida... Olharam em volta e se deram conta da situação. Todos as observavam. A tia pigarreou, ajeitou os cabelos, a roupa e o terço que ainda estava em suas mãos, tratou de resgatar seu bebê perdido em algum colo e voltou ao sofá. Naná ainda fixou seu olhar em Zuza, pegou seu pequeno rosário que na correria havia caído no chão ao lado da barata, e ambos – Naná e Zuza – voltaram aos seus lugares como se nada tivesse acontecido. ‘Ave-Maria, cheia de graça...’

Esse acontecimento foi a única prova que a família teve para reconhecer que Zuza e Naná, definitivamente, eram amantes, fato que desconfiaram desde aquela noite de carnaval, mas que depois passaram a duvidar, já que eles nunca se falavam. Por alguns momentos, chegaram até a pensar que eles nem se conheciam... Agora, ninguém mais duvidava da cumplicidade dos dois. Zuza realmente conhecia Naná quando a trouxera para casa – disseram alguns. ‘Menos mal’ – respirou, aliviada, a mãe do nosso personagem. Ainda mais tranqüila ficou porque sabia da gravidez de Naná. Nunca perguntara para a moça de quem seria o filho, mas chegara a sonhar que o bebê fosse seu neto. E aquele rompante de Zuza para salvar a amada, aliado ao grito que dera e ao pronunciamento do nome da moça, fora a prova definitiva de que precisava.

Foi, então, a partir daquele momento, que a mãe, zelosa, resolveu casar seu filho Zuza com Naná. ‘Meu neto não pode nascer sem que os pais estejam casados’ – dizia aos parentes e amigos. Decisão tomada, comunicou o fato aos noivos, que não emitiram nenhuma reação. A mãe tomou aquilo como aprovação, afinal, ‘quem cala consente’, já diziam os antigos... Semanas se passaram. Ninguém mais tocara no incidente da ‘barata’... Os dias corriam... Gente entrando e saindo daquele apartamento... Naná e Zuza vivendo como perfeitos desconhecidos... Porém, isso não impedia que os preparativos para o casamento agitassem aquele endereço da Barra. Até os porteiros do prédio estavam ansiosos para que o grande dia chegasse. Sabiam que festa no 302 era sinal de boca livre para quem aparecesse. Um dos porteiros, o mais antigo, já havia, inclusive, convidado toda a vizinhança do Pau-Miúdo, bairro onde morava. ‘É só chegar’ – dissera aos seus convidados. E assim como o tal porteiro, outros funcionários e alguns moradores do prédio e do bairro, acharam-se no direito – e no dever – de convidar pessoas de seu próprio convívio. Mas ao contrário do porteiro – o mais antigo – eles avisavam a mãe de Zuza sobre seus próprios convivas... E a mãe, sem querer dizer não, pois Zuza poderia ficar magoado, só ia anotando. ‘Tem mais quatro da ponta da rua detrás da minha’ – dissera um. ‘Bota mais dois aí na lista’- avisara outro... Logo, a lista de convidados estava o dobro do tamanho de quando a mãe de Zuza resolvera fazer a festa para comemorar o casamento do filho... ‘Festa íntima, somente para os mais chegados’- dissera, esquecendo-se de que, no caso de Zuza, os mais chegados são todos aqueles que forem chegando... Ao ser informada pela empregada de que a lista já passara dos dois metros, desistiu de anotar a quantidade de gente. ‘São os amigos de Zuza, não posso dizer pra não virem. – disse a mãe, resignada. ‘Qualquer coisa, a gente abre a porta e faz a festa pelos corredores do prédio’ – acrescentou, feliz da vida, com a popularidade do filho... A empregada, que até aquele momento estava meio constrangida de trazer toda a sua parentada, tomou aquilo como permissão para fazê-lo. ‘Já que todo mundo vai trazer seus parentes, não é justo que meu povo não venha’ – pensou... E, no dia, seguinte, logo pela manhã, foi até Periperi dar o cartão verde à quase toda população do local...

Todos os preparativos prontos para a festa, padre convidado, juiz confirmado presença, faltava somente uma coisa: o vestido da noiva. Naná, que possuía vários tubinhos de tons pastéis, pensara em usar um de seus modelitos. Porém, a mãe de Zuza achara um absurdo. ‘Toda noiva tem direito a véu e grinalda. – disse – E não vai ser por causa de uma gravidez que minha nora, a mãe do meu neto, vai ao seu próprio casamento vestida como se fosse a uma festa qualquer. Vamos sair agora mesmo para comprar um vestido de noiva pra você. – sentenciou, já com a bolsa em punho. – É meu presente de casamento.’ – finalizou, quando já ambas estavam descendo as escadas.

Foram à loja de uma antiga amiga da mãe de Zuza. A dona da loja ainda não havia chegado, mas a atendente, uma moça raquítica, pediu que esperassem. A mulher começou demorar demais, e Naná, cansada de esperar, resolveu fazer o ‘reconhecimento’ do lugar... Nas paredes da loja havia muitos quadros, todos com fotos de noivas, antigas e atuais... Naná achou interessante aquilo e, pensando-se entendida de vestidos de noiva, começou a analisá-los. Olhava para um, observava outro, chegava mais perto, afastava-se e, dependendo de sua apreciação ou não, ia fazendo caras e bocas... E, às vezes, como uma verdadeira consultora de modas, fazia também, alguns comentários... A mãe de Zuza, completamente absorta em seus pensamentos, ou melhor, em seus cochilos, nem prestava atenção às palavras da futura nora. Mas, de repente, como se houvesse um terremoto, a mulher foi acordada por um grito. Era Naná que, ao se deparar com uma foto antiga, exclamava, achando horrível o vestido. ‘Como é que alguém tem coragem de vestir um troço desse? – exclamava – A moça bem que poderia ter escolhido um modelo melhor, pois esse parece mais o próprio bolo da noiva’ E a mãe de Zuza, dando corda às tolices da nora, acrescentou: ‘Pelo menos disfarçaria essa cara de maracujá amassado, não é mesmo?’ E ambas caíram na gargalhada... Foi quando a dona da loja, ao chegar e ouvir as gargalhadas, interessou-se pelo motivo, abraçando-se à amiga que não via há muitos anos... Informada por Naná, que fizera questão de apontar a foto e contar em detalhes o diálogo que travara com a sogra segundos antes, a mulher desvencilhou-se dos braços da mãe de Zuza e, numa frase cortante, disse às duas que o vestido fora ela quem fizera e que a moça da foto era sua filha, no dia do seu casamento... O que aconteceu depois disso? Não se sabe exatamente. Sabe-se apenas que ambas, a mãe de Zuza e Naná, apareceram em casa com um vestido enorme, parecendo realmente um bolo de noiva de três andares, com direito a coco salpicado por todos os lados e rendas chantilly de ponta a ponta...

O dia do casamento chegara. E, com ele, todos os convidados possíveis e imagináveis... E os inimagináveis também... Era tanta gente presente no evento que a quilômetros podia-se avistar os carros estacionados e o burburinho. Também a quilômetros sabia-se que em algum lugar da Barra estava acontecendo uma festa. Só não sabiam explicar de quem era a tal festa e nem o que comemoravam. Mas todos festejavam. Ambulantes, aproveitando o movimento, gritavam anunciando seus produtos (bebidas, salgados, bijuterias, fotos de artistas), carros de som estacionavam, aumentando ainda mais o barulho e a mistura de estilos musicais, jovens se aglomeravam, e, por fim, até os Filhos de Gandhi apareceram. Sim, naquela época, eles já existiam! Fora a gota d’água (literalmente, já que o cheiro de alfazema tomara conta do local) para que se começasse um carnaval fora de época. Dizem que este foi o maior carnaval de todos os tempos já realizado no país...

Eu não estava lá, mas imagino que, em se tratando de uma festa iniciada na casa de Zuza, tudo poderia ter acontecido... Depois dessa, que durou três dias e três noites, festa para a mãe de Zuza, daquele dia em diante, só quando o neto completasse um ano... E foi assim, em plena paz, harmonia, silêncio e ausência de Zuza, que Naná chegara aos nove meses... Esqueci-me de informar que, no dia do casamento, no momento em que o padre perguntara a Zuza se ele aceitava a noiva como sua legítima esposa, amando-a e respeitando-a por todos os dias de sua vida, ele simplesmente soltou uns pequenos grunhidos e saiu para tomar água... A mãe, preocupada com o sucesso (ou fracasso!) do casamento, traduziu aquelas grunhindelas do filho... ‘Sim, ele disse sim!’ – afirmara. ‘Se a mãe está dizendo, é porque ele disse – argumentou o padre – Mas, se alguém tem algo contra, que fale agora ou cale-se para sempre!’ – perguntou, o padre, aos convidados, olhando-os por debaixo dos óculos...

Como ninguém se manifestara (e o medo de que não houvesse festa?), o reverendo deu por encerrada a cerimônia, declarando-os como casados perante Deus e os homens. Alegria geral. Todos caíram na gandaia, inclusive Naná, que dançara a noite toda com um tal de Vinícius. Seria o ‘de Moraes’? Bem, a partir daquele momento, ninguém mais viu Zuza, apesar de alguns afirmarem que havia um homem parecido com ele lá pelos lados do Rio Vermelho, dando uns mergulhos no mar, acompanhado de uma bela mulata...

Algum tempo depois... Naná aos nove meses... A bolsa estourara... Era noite... Já fazia muito tempo que a casa não se enchia de parentes, amigos e pessoas estranhas... Já estava na hora de todos começarem a aparecer... E foi exatamente isso o que aconteceu...

Naquela noite, a casa estava cheia de visitantes ou ‘moradores temporários’... Vendo o corre-corre de sogra e nora, todos eles acompanharam Naná e a mãe de Zuza ao hospital... Nosso herói, como se sabe, não estava presente naquele momento, havia desaparecido desde o dia do casamento... Mas como sempre o bom filho à casa torna, Zuza voltara, tempos depois, quando o bebê já estava para completar quarenta dias... Assim que entrou, Zuza foi informado por alguém do nascimento do bebê de Naná... Este mesmo alguém o encaminhou até o leito onde se encontrava mãe e filho... Naná havia acabado de amamentar o pequeno ser... Naquele momento, ninguém soube dizer o que Zuza achara do bebê. A cena, para quem estava presente, parecera completamente desprovida de emoções...

Parece que Zuza, ao ver aquele serzinho, praticamente uma miniatura sua, os mesmos olhos apertadinhos, o mesmo ar de ironia, não esboçara nenhuma reação... Permanecera segurando o seu sanduíche de pasta de abóbora com atum e, de uma bocada só, o fizera desaparecer. Depois, o que ouviram apenas foram aqueles barulhos inconfundíveis que ele costumava fazer quando mastigava...

Após isso, Zuza sumiu de vez...

Nada estranho para quem fazia de seus desaparecimentos algo constante... Porém, o estranho ficou por conta de Naná... Ela também desaparecera assim que o filho completara um ano...

Era um dia de festa novamente naquele apartamento, a grande festa prometida pela avó ao neto querido. Vários parentes, amigos, desconhecidos... Todos presentes. Comida e bebida à vontade... Muito barulho, muita música, crianças correndo de um lado a outro... Chegada a hora de cortar o bolo, a avó não achava a vela que havia comprado. ‘Ninguém viu? – perguntava – Era azul, com um anjinho de cabelos amarelos em cima, segurando um grande sanduíche.’ – descrevia... Mas de nada adiantava. Ninguém havia visto aquela vela azul... Naná, então, prontificou-se a sair para comprar...

Foi, então, que aquela moça loira que um dia adentrara aquele apartamento sem nada dizer, saiu e nunca mais voltou...

Dez anos depois, várias festas, vários bolos de aniversário, várias velas assopradas e vários sanduíches degustados, o pequeno Zuzinha (designação dada aqui ao filho de Naná), cara redonda e olhos apertadinhos, cabelos levemente aloirados, vestindo sua inseparável sunguinha vermelha por baixo das calças, tinha um pensamento fixo...

Dizia, constantemente, que, quando crescesse, procuraria pelos pais, ao que a avó ouvia silenciosamente, sem esboçar nenhuma reação... Apenas servia o neto com aquele sanduíche que já conhecemos e contemplava uma degustação acompanhada daqueles barulhos que também já conhecemos...

(Adriana Luz - texto publicado no livro "Tertúlia na Primavera" - Ed. Espaço do Autor - 2004)

Adriana Luz
Enviado por Adriana Luz em 23/02/2007
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