Os óculos de um homem morto

 
Eu achei os óculos de um homem morto.
 
Foi assim: Eu caminhava pelo Rio de Janeiro, e avistei os óculos de um homem morto. Ele estava no chão, com as lentes quebradas e sujo. É antigo mas não havia poeira. É de um homem morto mas não tinha sangue.
 
O dono desses óculos foi poeta. Quem sabe o que ele escreveu? Quem sabe o que ele sentiu? Neste mundo moderno cheio de máquinas e relacionamentos virtuais, não existe máquina alguma capaz de expressar o que esse homem um dia foi capaz de expressar! Nenhuma máquina no mundo é capaz de sentir o que ele sentiu, muito menos traduzir em palavras esses infinitos sentimentos.
 
O dia estava nublado. Não havia muita esperança nos olhos do mundo, mas quanta bondade e sofrimento nos olhos de quem passava por ele! E mesmo assim, indiferentes, pisavam no objeto sem saber a quem ele um dia pertenceu.
 
Cada pessoa que por ele passou viveu uma história sofrida e profunda, mas nenhuma seria capaz de expressar como esse homem morto era capaz, todo o sofrimento de suas vidas!
 
Quem sabe quantos versos esse homem escreveu? Quem sabe quantas emoções ele viveu? Quem sabe quantas histórias de vida impressionantes ele testemunhou? E quantos livros ele leu? Quantas lágrimas os olhos por trás de sua armação de metal derramaram?  Ninguém jamais poderá saber!
 
E no entanto, todos que por ali passavam seriam capazes de entender esse homem morto. Isso porque, como está acontecendo nesse momento com todos os passantes, também havia uma pedra em seu caminho. A diferença é que a pedra no caminho desses passantes é muito, muito maior.
 
Enquanto esse homem morto virou estátua que armazena as fezes dos pombos em sua cabeça, as pessoas que não o conheceram, muitas delas (e a maioria), são desprovidas de uma educação de respeito. E infelizmente não podem nem mesmo ler os versos desse homem morto. Elas não precisam de óculos, elas nem mesmo sabem ler. São bondosas, querem aprender, mas não há chances nesta terra de pobres explorados por máfias políticas.
 
Eu achei os óculos de um homem morto. Os tempos mudaram. E parece que esse homem não terá mais significado além de uma mera estátua.
 
Há ruínas em nossas terras: os livros perderam seu significado, as pessoas parecem zumbis seguindo propagandas, e óculos antigos e quebrados são abandonados pelas ruas.
Sr Arcano
Enviado por Sr Arcano em 13/10/2012
Reeditado em 06/05/2014
Código do texto: T3930505
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