O garoto da harpa dourada


 
Passou-se muito tempo desde minha última lamentação para os sete ventos do esquecimento. Então, aqui retorno com mais uma escritura soturna.
 
Depois de uma noite entregue à bebida e às lamentações da vida, quando a vontade era morrer para não ter mais que encarar as dores do mundo, venho com mais frases de reflexão e loucura para os que não estão mais entre nós. Porque é escrevendo para os mortos que você encontra compreensão. São poucos os vivos que compreendem o que vem do outro lado com seus significados simbólicos e ocultos.
 
O momento é de ressaca. Lá fora chove. E meu chá está frio porque qualquer coisa quente tira minha conexão com a chuva. E é com sua natureza cheia de energia que agora escrevo, olhando pela janela essas ruas repletas de pessoas guiadas por suas vidas de aparências, hipocrisia e ignorância.
 
Pois bem, com todo esse clima venho agora relatar o que aconteceu comigo dias atrás...
 
 
Eu vinha caminhando meio sem rumo pela cidade quando de repente deparei-me com algo inusitado. Encostado na parede, um garoto de cabelos encaracolados, parecendo um anjo, tocava uma harpa com uma habilidade fora do comum.
 
Mesmo eu tendo uma vontade enorme em desaparecer para tudo e para todos, ele continuava me dando uma lição de vida, como se eu devesse permanecer neste mundo pelo simples dever de por aqui continuar a vagar e consequentemente aprender.
 
As pessoas passavam por ele e não paravam para ouvir. Ele tinha um pano estendido no chão para receber as esmolas. Mas ninguém parava.
 
Eu queria entender o motivo para tanta indiferença. Então parei e prestei atenção em sua música. Era uma harpa de tamanho médio e ornamentada com detalhes dourados. E para minha surpresa eu descubro, dias depois, que o garoto aprendeu sozinho a tocar aquele objeto fora do comum. Era a única coisa que ele possuía. Seu único brinquedo e passatempo.
 
Sua música transportou-me para um mundo que a maioria prefere ignorar, e talvez por isso ninguém ali parava...
 
As TVs nas vitrines das lojas mostravam um mundo de comércios sem fim, obrigando as pessoas a serem escravas de seu próprio consumismo. Mas o garoto ignorava o que não podia ter, e nem queria porque sua harpa era tudo o que lhe bastava para continuar vivendo.
 
Mulheres caminhavam ao redor mostrando a moda das roupas bonitas e sensuais naquele dia quente. Como putas, mostravam o corpo ideal que deve ser aceito pelos costumes da ideologia contemporânea, onde tudo deve ser belo e atraente para os olhos de uma sociedade preconceituosa. Mas o garoto, com suas roupas surradas e simples, ignorava qualquer obscenidade e continuava tocando sua harpa, mesmo sendo uma triste canção.
 
As pessoas nos bares ali perto, consumindo cerveja e cigarros como trogloditas de uma porca humanidade, falavam de violência e corrupção. Tudo o que elas tinham que aceitar porque não eram capazes de fazer nada para mudar suas vidas para melhor. Mas o garoto, indiferente a tudo isso, continuava tocando sua harpa, porque sua canção era tudo o que bastava para tornar o mundo melhor.
 
Homens “felizes” caminhavam com pressa sem notar o garoto. E eu a tudo isso observava, como se estivesse no mundo do garoto e o mundo dos homens fosse algo a ser testemunhado por meus olhos incrédulos. Seus horários pré-definidos de homens sem tempo para nada, seus carros elegantes de homens presos ao materialismo cujo vazio é a lei que predomina, seus passos de pessoas mortas... Mortos iludidos por leis democráticas que os faziam pensar que eram livres, quando na verdade caminhavam apenas para cumprir aquilo que o sistema determinava, como escravos de uma época triste. Mesmo assim, diziam-se felizes. Porque o sistema também os obrigava a acreditarem nessa ilusão. Mas o garoto, que não podia ser controlado, permanecia isolado dos outros, sozinho, tocando sua canção, mesmo sendo uma canção triste.
 
E eu, percebendo aquela terrível realidade, tentava segurar as lágrimas. E chegava à conclusão que talvez fosse por isso que ninguém ali parava, porque o garoto era aquele tipo de marginal que jogava na cara das pessoas o quanto elas eram decadentes. E ele, bom, ele apenas era um artista, uma espécie de anjo que ali estava para tocar canções dificílimas, como um gênio que já tinha tudo para ser feliz, apenas com sua harpa, mesmo sendo canções tristes.
 
 
* * * 
 
A polícia chegou.
 
Queriam saber onde e como ele conseguiu um objeto tão caro.
 
O garoto não respondia às perguntas. Permanecia tocando.
 
Julgaram-no como sendo um pivete, um bandido, um garoto de rua. E tentaram pegar a harpa à força, mas o garoto não queria entregar seu bem mais precioso. Ninguém podia tocar em sua harpa, porque aquilo era sua alma.
 
Então bateram. Bateram muito. Espancaram o garoto até o sangue escorrer e ele largar a harpa. Tentei impedir, mas eu também fui obrigado a ouvir ameaças e insultos de homens da lei.
 
Foram embora e deixaram o garoto largado na calçada sem sua harpa. Seu olhar desesperançado e cheio de lágrimas agora mostrava uma alma morta. DIFICÍLIMO DE ENCARAR!
 
A desesperança foi a última coisa que senti espalhando-se naquele ambiente, antes do garoto voar com suas asas de anjo para o céu.
Sr Arcano
Enviado por Sr Arcano em 14/10/2012
Reeditado em 01/02/2014
Código do texto: T3931511
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