O Salto da Bota

Dia do amigo, 2012.

Caso o amigo se transmudasse numa pérola, entre todas as preciosidades seria a mais rara. Qualquer coisa como o último camelo do deserto, a última boia entre os náufragos, do coqueiro o último coco. O amigo é feito quase que unicamente de ombros e ouvidos. É um bicho esquisito, quase sempre gozador, tirador de sarro, quando torce por um time diferente do nosso aí é que complica de vez. Paradoxalmente é a ele a quem contamos os pecados que não confessaríamos nem ao Papa. Por outro lado é simples, atencioso, previsível como uma criança e com uma incrível capacidade para nos arrancar sorrisos nos momentos menos oportunos. Para o amigo não existe reserva, é insubstituível. É ímpar que conosco faz par. Não se adjetiva um amigo, não encontramos palavras que o exprima, que o defina e às vezes é um chato... É imensurável a falta que nos faz até nos momentos mais simplórios, por vezes sai dos trilhos e quando isso acontece acaba por nos arrastar juntos.

Num passado remoto alguém já disse: ”Nem todo irmão é amigo, mas todo amigo é sempre irmão.” Ora, o amigo é muito mais que isso, porque o amigo não se compara com nada, o amigo não se enquadra nos parâmetros convencionais, porque é único. Tendo relógio não tem hora: não tento tempo arranja; não tendo solução imediata, armenga, inventa. O amigo não se suscetibiliza com picuinhas, ”com disse me disse”. Suporta nossos defeitos, aconselha, apoia e é capaz de abdicar para que brilhemos um pouco mais, amigo não ofusca.

Certa vez o Cristo disse aos seus apóstolos: ”Já não vos chamo de sevos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, chamo-vos de amigos”. Poxa vida, que expressão forte!

O amigo não se preocupa em dá coisas simplesmente, ele doa-se com naturalidade. Sempre sabemos onde ele se encontra e se gritarmos ele vem. Ele é “um fila da mãe” que nos arrasta para onde bem entende e ninguém nos entende melhor que ele. Por vezes berra, gesticula, grita e a gente ri. Quantas vezes já não lhe dissemos: “Não sei como te suporto...” mas é assim mesmo é chumbo trocado. Ele sabe que temos um montão de senões, ainda assim contemporiza, contorna, nos faz ver que estamos errados. Quando é para respeitar nosso espaço, respeita; quando é para invadir, invade. O amigo é consciencioso, não nos deixa entrar numa barca furada e na maioria dos casos oculta seus problemas para que não nos preocupemos. Amigo tem faro, sabe nossos passos, abraça, chateia, inventa estórias, vai do zênite ao nadir num segundo, tudo para nos ver alegre e feliz.

Um provérbio grego diz: QUEM TEM UM AMIGO TEM UM TESOURO. Então quem perde um amigo um tesouro perde. Perdê-lo é carregar um prejuízo pela eternidade, fica uma cratera sem tamanho, um vazio, um silêncio ensurdecedor... É como se no melhor da festa, quando a orquestra dá os acordes da Valsa Imperial, perdêssemos o salto de um pé de nossas botas. Não tem sapateiro que a concerte, ficamos a manquitolar, sem equilíbrio à deriva.

Há 35 anos perdi um dos saltos de minha bota, perdi um amigo e é a você Woufran que eternizo nesta pequena crônica.

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 15/10/2012
Reeditado em 01/07/2020
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