O Catador

Eu estava no ponto de ônibus, aturdida por iniciar uma labuta tão pessimista para muitos e tão significativa para minha visão ingênua e altruísta quanto ao magistério, pouco depois das seis da manhã.

Divisei, ao longe, um ser que me remeteu a Drummond em sua poesia O bicho. Lá estava ele, cheirando e remexendo o lixo fétido da Pousada, ali por perto, como se fosse um bicho qualquer. A cada remexida, um som rouco de satisfação ao encontrar uma provável sobra de algo que pudesse lhe valer uns trocados ou, simplesmente, saciar-lhe a fome não se sabe de quê, haja vista seu breve toque com os lábios quando achava algo que, ao longe, eu não reconhecia. Eram tantas as irrefletidas investidas contra aquele latão desbotado e sujo que me embrulhou o estômago quando aquele odor (a bons metros de distância) vinha me lembrar o quão feliz eu sou em não ter a soberba de achar-me especial em meio ao ciclo social em que convivo. Ao invés disso, condoía-me a alma em lembrar como ajo para livrar-me, cegamente e a qualquer preço, do infortúnio dos inúteis excessos que deixo acumular nessa minha vida consumista e mesquinha. Por que, pensei eu, ao invés disso, não procuro prover diretamente aqueles que mais carecem de bens materiais que eu? Tal questionamento vinha me apunhalando a alma, num tormento que me tirava o fôlego. Fazia-me mal. Isso me levou a refletir sobre o óbvio: não há batalha mais crível do que aquela que nos leva ao encontro da sobrevivência - simplesmente.

Enquanto uns apenas lamentam e choram o infortúnio de uma vida ou profissão, outros apelam para a mais digna das investidas: a luta por não precisar roubar para viver, independente das circunstâncias.

Invejei o Catador na sua busca. Qual de nós teria a humildade de descer do pedestal do orgulho e simplesmente lutar com todas as armas, desnudando a aparente vida, perante os olhos atônitos de uma sociedade em que o “ter” sobrepuja o “ser”? Por que a nossa primeira e, talvez única opinião, é sempre a mais negativa e crítica perante uma cena daquelas? Invejei o Catador, porque, em momento algum, o vi abaixar a cabeça por vergonha de sua atitude insana e nada higiênica. Talvez, o desinfetante usado por ele para não se infectar naquela imundície pútria seja pura e simplesmente sua vontade de viver, independente da indignidade de seus atos expurgados pela pseudo-sociedade da essência (?)... E eu, pronta para encarar uma labuta impregnada de maldizeres, vislumbrei uma nova esperança: educar com mais afinco. Educar para realmente refletir, como eu refleti a partir daquela cena. Educar para abrir mais os olhos, como eu o fiz (não denotativamente, apesar da noite em claro), mas para “ver” no que de fato a “educação” transforma quem vê ou participa de tal cena. E, por fim, Educar para Aprender o valor da Sobrevivência, de fato, num mundo em que tantos “subvivem”...

Agora, não me sentia mais aquela mulher, antes tão aturdida, naquela hora da manhã, num ponto de ônibus. Renovei...

Luzia Avellar
Enviado por Luzia Avellar em 23/10/2012
Reeditado em 28/01/2013
Código do texto: T3947656
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