O Mais Feliz dos Homens


Creio que todos conhecemos uma antiga fábula a respeito de um rei doente que para ser curado precisava vestir a camisa do homem mais feliz do mundo. O irônico desfecho: o mais feliz dos mortais, após extenuante busca, foi encontrado e não tinha camisa.

Voltávamos os 3 de mais um plantão fiscal. Foram 48 horas de trabalho na fronteira do estado em defesa do fisco. Eu estava no banco de trás do carro, os olhos querendo fechar. Meus dois companheiros iam em silêncio. Em um determinado trecho da estrada reparamos em um velho alquebrado a andar pelo acostamento. Cobria a cabeça com um chapéu de tecido carcomido e amarfanhado, camisa azul celeste de manga comprida fechada nos pulsos. Uma calça branca encardida e botinas a longo prazo precisando de novas formas.

O ancião carregava 3 volumes: uma pasta velha e preta e duas sacolas de plástico que quase se arrastavam no solo, devido ao peso. Devo dizer que nunca dávamos carona: era um princípio inviolável. O meu colega motorista ao ver o velho resolve frear o veículo. Era um brincalhão de primeira qualidade, tanto que tornava-se difícil afirmar quando ele dizia a verdade. O outro colega, Rafael, um dorminhoco de enorme capacidade sonífera, alertou-se, saindo de sua letargia habitual:

- O que você vai fazer? Vai brincar com o velho? Em pânico eriçou-se no banco.

O motorista, Bruno, deu uma ré no carro em plena via. Eu esperei o desenrolar da ação. Bruno abaixou os vidros do veículo e perguntou ao andarilho:

- O senhor quer carona?

Sem responder, o ancião deu a volta no veículo e já foi abrindo a maçaneta. Notamos prontamente que era mudo. Muito velho, os sulcos profundos a denunciar toda uma vida de lutas e derrotas, quem sabe alguma vitória. As mãos pequenas com grossos dedos e inúmeros calos, mostrando que tivera muita força na juventude. Ele não se encontrava em condição de recusar auxílio. Rafael ficou inquieto: eu perdi o sono, perdi o sono. Para quem o conhece, tal afirmação denuncia um evento de extrema gravidade.

Prontamente procurei auxiliar o nosso novo companheiro com as sacolas. Lentamente, com enorme dificuldade ele conseguiu sentar-se no banco, depois de me entregar a mala preta. Logo que o veículo começou a andar, pedi que colocasse o cinto de segurança. Tive que auxiliá-lo, devido ao pouco hábito que ele possuía em utilizar os acessórios. Rafael perguntava se eu estava entendendo o Bruno. Comecei a rir e eles logo perceberam: pronto, ele vai escrever sobre isso.

Não demoramos a notar que o nosso novo amigo, embora não falasse, compreendia tudo o que dizíamos. Comecei a travar conhecimento.

- O senhor nos escuta? Ele balançou a cabeça afirmativamente.
- O Jurandir já vai começar a coletar dados para uma nova história, Bruno emendou.

- Vou mesmo. E voltei ao velho:

- O senhor mora em Catalão? Fazendo sinal com as mãos, indicando uma casa na linguagem dos sinais, coisa que aprendi com um primo deficiente auditivo, ele confirmou que tinha duas. Uma na cidade e outra no campo.

- Pergunte como ele ficou surdo, Bruno participava.

Ele demonstrou com as mãos que foi picada de cobra. Rafael, mais desperto do que nunca, também interessou-se pelo nossa boa conversa silenciosa.

- Há quanto tempo? Com as mãos, por 5 vezes espalmou-as abertas, e acrescentou mais seis.

- Cinqüenta e seis, exclamou Bruno, qual é a sua idade? Mostrou possuir 74 anos. Foi picado aos 18 e perdeu a fala: esta foi a grande tragédia da sua vida, deduzimos.

Comecei as apresentações, sob os apupos dos colegas. Disse o nome de cada um e brinquei, afirmando que um dos meus colegas era “boiola”, o velho deu a mais bela gargalhada em silêncio que eu já presenciei elevando o nível de nosso astral às alturas. Continuando a brincar, disse-lhe que quando precisasse parar era só aplicar um tapa na orelha do motorista à sua frente. Ele novamente nos premiou com sua gargalhada em uma boca carente de dentes.

Apresentei minha identidade funcional, mostrando que éramos auditores e trabalhávamos em um posto fiscal próximo, para melhor ganhar a sua confiança - o que percebi que não era mais preciso. A seguir, perguntei se era casado. Ele informou que sua esposa falecera há 4 meses. Seu olhar ficou triste. Mostrou o coração, denunciando que sua esposa não sobrevivera a um ataque do destino. Uma bolsa de lágrimas formou no sulco dos seus olhos. Demonstrou a falta que ela lhe fazia, reverenciando-a como pôde. Não precisei traduzir aos colegas. Todos sentimos a sua segunda grande dor.

Logo ficou apreensivo; assinalou que precisava saltar do veículo. Foram poucos quilômetros. Com grande dificuldade, depois que saí pela porta, ele conseguiu desembarcar. Agradeceu com gestos, tirando o chapéu e olhando para os céus. Ficou na porta de entrada de uma fazenda. Não era muito distante, pudemos apurar. Bruno fez a sua boa ação. Rafael observou que éramos muito felizes.

A humildade, o jeito simples, a capacidade de rir com sinceridade apesar das pesadas marcas que a vida lhe cravara eram provas incontestes da nossa pequenez e do quanto temos que ainda aprender na longa viagem da vida. Não sei se ele era o mais feliz dos homens, isso não importa. Somos mais felizes porque temos conforto, carros, cargos, renda e luxo ou porque sabemos rir, apesar dos reveses do existir? Que aquele homem viva o suficiente para pregar pelo mundo o seu sermão silencioso...