O RIGOR DA LEI

O guarda já se preparava para lavrar a multa. “Que absurdo!”, falou de si para si, “gente que não tem semancol estaciona na vaga do idoso sem licença. Bem que essa infração poderia dar cadeia”. Assustou-se com o alarme do carro, num breve duplo bip, piscada de luzes e o barulhinho das travas liberando as quatro portas do sedan azul marinho vindo de outro país do primeiro mundo.

- Que foi seu guarda? Vai me multar?

Disse uma senhora, aparentando jogar na categoria sub-100 do Timão. Pelo menos as roupas sugeriam a segunda fase de um período de luto.

- A senhora estacionou na vaga exclusiva para idosos e o seu carro não tem o adesivo de identificação. Explicou o agente de trânsito.

- Olhe bem pra mim, moço. Quantos anos o senhor acha que eu tenho? Se pensa que vou ficar lisonjeada arriscando qualquer número abaixo de sessenta, não acredite nisso. Meus cabelos e rugas denunciam os setenta e oito anos de peregrinação pelas estradas da vida.

- Eu sei, vovó, mas o problema não é exatamente a sua idade e sim a falta do credenciamento. O adesivo é a exigência legal que lhe permite estacionar nesses espaços reservados para idosos, como a senhora não possui o adesivo sou obrigado a cumprir a lei. Sinto muito, mas esse é meu trabalho, sou pago para isso.

- Deixa ver se entendi, meu filho, vou lhe fazer uma pergunta: você é pago para cumprir a lei ou para garantir os direitos do cidadão? Como cidadã e idosa, tenho direito de estacionar nessa vaga. Ela foi feita para pessoas como eu. Posso dizer que ela foi feita para mim. Essa lei que o senhor quer fazer cumprir nasceu para me proteger, agora o senhor usa essa mesma lei para me prejudicar? Para você, o fato de eu não ter o bendito adesivo é mais importante que a minha idade, ou que a minha condição de idosa? Lamento que escola em que você estudou lhe tornou um legalista, que se apega ao literalismo da regra e esquece o espírito que motivou a sua existência. Pode parecer muito justa a sua atitude, carregada de moralismo e rigor, mas não vale nada para mim que sou objeto do direito. Não preciso de pessoas como você, preciso mesmo e de pessoas que me protejam de você num momento como esse. Se quiser me multar, vá em frente. Só espero que isso lhe faça perder o sono toda vez que lembrar.