O Curresgô

Que a língua portuguesa é complexa e rica, isso ninguém tem dúvidas. Que criancinhas falam dialetos meio surreais, ou sobrenaturais, isso ninguém há de duvidar. Essa coisa de “Gugu dadá” já está meio obsoleta.

Outro dia, estava num dos raros (raríssimos!) momentos "meus", numa tarde de sábado, enquanto observava uma garotinha sapeca no clube, há dez metros de minha casa e me bateu uma espécie de déjà vu. Isso me remeteu ao dia em que Mariana, minha filha de sete anos (na época com pouco mais de 2 ) deixou a todos nós bastante perplexos nesse mesmo lugar, o qual chamo de “meu anexo”.

O fato aconteceu num dos finais de semana em que estávamos na piscina e eis que chega a dita cuja, aos prantos, com mais duas pestinhas a tiracolo correndo como doidas. “Mamãe, o curresgô, o curregô!” Eu, entre atônita e calma, observei que não havia ninguém aparentemente ferido, ou fugindo do cachorro (o Neguinho, que é amarelo, vive por lá e não costuma atacar crianças, só motos, alguns carros e outros cachorros concorrentes). Perguntei-lhe então, sob o olhar de duas mães histéricas e murmurantes o que tinha acontecido e ela apontava freneticamente para o parquinho, chorando em bicas, tentando se comunicar em desespero: “Curresgô o bicho e a menina machucou de medo, aí o bumbum...!”

Putz! Aí a coisa tomou um rumo quando pouco vertiginoso: Essa coisa de “Curresgô”, bumbum, machucou, já viu, não é? Mesmo criancinhas de dois anos podem saber alguns nomes, digamos, “chulos”, afinal, nós pais, não somos lá tão educados em termos de vocabulário e crianças ouvem, às vezes, o que não devem... Bom! Só sei que uma das mães pudicas que estava por ali me olhou meio de esguelha e, mesmo não falando nada, decodifiquei uma sensura. Logo eu que, de longe, sabia o que realmente significava o dialeto línguístico da minha filha... Apesar de calma, ria por dentro pensando, assim como todos ali, aonde queria chegar aquela florzinha de pessoa, tão chorosa, com aquela história toda... Depois de flashes e flashes de suposições, tentativas em acalmar o pequeno grupo de inquisidores e de três meninas barulhentas, fui até o local apontado por aquelas figuras matraqueantes. Sabe-se lá, talvez houvesse algum pedacinho de roupa rasgada em algum brinquedo, não é... “Onde será que Mariana aprendera esse nome feio, meu Deus!” E lá iam as três, sendo uma mais nova ainda e a outra, no ritmo da minha, só chorando... E eu junto, puxada pela Mariana sem saber se ria ou se chorava com elas. E as suposições continuavam atrás de mim.

Quem salvou o quase monólogo da Mariana, alguns minutos depois, foi o meu marido que, saindo do bar com a cervejinha habitual no copo entendeu, enfim, aquele suplício: ocorre que a maior delas, de pouco mais de três anos, quando se preparava para fazer uma coreografia na casinha do parquinho (aquelas que complementam o brinquedo, formando acima de vários outros uma cobertura) observou um marimbondo e todas pularam em fuga, amedrontadas pelo terrível inseto. Então, por onde fugiram? Pelo escorregador – o “curresgô” da questão. E o famigerado picador saíra voando assustado em meio às três. Depois dessa, o clube em peso ficou sabendo do dia em que adultos sem noção (inclusive eu) ficaram atordoados em tentar entender a história do “curresgô”, por onde desceram em fuga três criaturas em busca de ajuda. E ainda por cima, o “bumbum... que machucou” significava meramente um raladinho de leve, na lombar da mais nova que, ao fugir do marimbondo, ralou-se já na saída do escorregador. Finalmente, conseguimos entender que o “bumbum” não foi machucado. Era apenas o “instrumento” utilizado para descerem no “curresgô”. Houve uma má interpretação semântica por parte dos adultos. Não havia nada, absolutamente nada rasgado em nenhuma das crianças...

Depois desse, vieram outros dialetos bizarros e mirabolantes, dignos de lembranças e risadas ao serem lembrados, só que agora pensamos bem para não decodificar errado. Gente grande, quando pensa, idealiza muita besteira!

Luzia Avellar
Enviado por Luzia Avellar em 04/11/2012
Código do texto: T3968200
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.