Cabelos e Sorriso


 
Cabelo quando cresce é tempo
Cabelo embaraçado é vento
Cabelo vem lá de dentro
Cabelo é como pensamento
        Arnaldo Antunes e Jorge Ben Jor

 
     Sexta-feira, quase 18 horas, trânsito infernal e eu me obrigando a mais uma empreitada para encerrar o dia: supermercado. Cantarolo uma canção para não pensar e caminho entre as prateleiras e gôndolas para concluir a tarefa o mais rápido possível. Louca por um banho e pelo descanso merecido, estoicamente enfrento a fila no caixa e espero a vez no táxi, ajudada pelo gentil empacotador, que  arruma as compras e me deseja um bom final de semana.
     Dentro do carro, respiro fundo, dou boa noite e digo meu itinerário. O taxista me olha visivelmente  surpreso e comenta “– A senhora usa os cabelos soltos!” Levo alguns segundos para processar o comentário e respondo com um “como é?” pouco amistoso, mas também surpreso.
-"Desculpa Moça. Perdoe meu atrevimento.Gosto muito de cabelo solto mas não consigo convencer minha mulher de usá-lo assim, nem para me agradar. Desculpa, pensei alto...."

     Respirei fundo e pensei no que dizer numa situação daquelas.Cheguei a sentir uma pontinha de pena daquele senhor que deixava escapar uma intimidade desse nível para uma desconhecida.
-“Entendo, mas se ela não se sente a vontade em usar cabelo solto, não valerá a pena se o fizer sem vontade.Que tal conversar com ela sobre os seus motivos?” Respondi, perguntando, ao mesmo tempo.

     A essa altura o táxi já enfrentava o trânsito e o senhor, aparentando uns sessenta anos, continuou falando de cabelos, de que não entendia essa mania de sua mulher viver prendendo os seus, pois se ele tinha se encantado por ela justamente por seus cabelos fartos e longos, mas ela achava que depois de uma “certa” idade não ficava bem mulher de cabelo solto, médio ou longo.
     Aproveitou e me contou uma piada sobre "cabelo bandido"..que quando não tá preso tá armado e não tem mãe que dê jeito...Dei uma boa gargalhada e vi que ele se divertiu com a minha descontração.
     Pensei na minha aparência ao final de uma semana exaustiva de trabalho, me sentindo cansada, descabelada e ainda ser alvo da curiosidade de alguém justamente por esse “descabelamento”.... Vá entender os gostos e as preferências da alma humana!
     Na porta de casa o senhor pediu desculpas mais uma vez e deu os parabéns pelos meus “belos” cabelos e também pelo meu sorriso. Agradeci, achando graça no jeito encabulado mas corajoso de me fazer o elogio. Fiquei imaginando o motivo de sua mulher não gostar de cabelo solto...
     Lembrei-me de situações inusitadas vividas por causa dos meus cabelos. Menina ainda, no período de "grupo  escolar",  vivia sendo importunada pelos meninos que puxavam meus cachos, me chamavam de “cabelo de barbante”, “cabelo de milho”...Depois fui anjinho de procissão, com longas asas...Um voo no tempo e me vi empunhando bandeiras “cabelo ao vento gente jovem reunida”...Tempo de ser e viver a rebeldia traduzida nos cabelos tão livres quanto a nossa vontade de ser livre também.Em pleno advento da chapinha me vi sendo alvo de brincadeiras, de sugestões para ceder os apelos da última moda. Claro que jamais me passou pela cabeça desfazer meus cachos! 
    Não tenho certeza, mas acho que foi aos 12 anos que fui “aparar” os cabelos e me livrei da cabeleira cacheada e trabalhosa mantendo-o curto ou nos ombros por muito tempo.Alternei curto e longo até concluir que gostava mesmo do tamanho médio, visual meio selvagem, sensualidade à flor da pele, cabelo solto, cacheado e ao vento.
     Vez ou outra, prendo-o, mas não demora e lá está ele solto, revolto...livre, como gosto.“O cabelo é moldura do rosto”, dizem. Verdade ou não o cabelo é um item fundamental na nossa aparência e muito mais do que uma questão de vaidade ou modismo, estou convicta que meus cabelos e meu sorriso traduzem o meu jeito de ser e estar no mundo.