ACOMPANHANDO A TROPA

No ano de 1.950 eu estava com nove anos. Logo que entrei de férias escolares, recebi de meu pai uma notícia que muito me alegrou: eu passaria uns dias na fazenda Seringa dos meus avós José Maria e Sinhá. O que realmente despertava o meu interesse não era o destino, mas a viagem até a fazenda: eu teria que acompanhar a tropa do meu avô .O trajeto era o seguinte: a tropa saía da fazenda Seringa para levar mantimentos para Piranga. A distância da fazenda até Piranga era de quarenta quilômetros, mais ou menos. Como a nossa fazenda ficava a quatorze quilômetros de Piranga, era lá que os tropeiros arranchavam, pernoitavam e, no dia seguinte, seguiam para Piranga. Na volta, seguiam o mesmo trajeto.

Desde que recebi a notícia do meu pai Zé Carneiro, fiquei na expectativa da chegada da tropa, pois iria realizar o sonho de ser tropeiro por um dia. A égua branca já estava de prontidão. O arreamento era o melhor que tínhamos.

Numa bela tarde ouvimos, ao longe, o tilintar dos cincerros da mula madrinha. A tropa estava chegando. Minhas irmãs e eu corremos para a porteira de entrada da fazenda para vermos a chegada da tropa. Assim que chegaram, os tropeiros foram cumprimentar o nosso pai que estava à porta da casa. Fiquei sabendo o nome deles: o Geraldino Lucas e o Divino Custódio. A tropa era composta de dez burros e duas mulas, sendo que uma delas, a Ruana, era a madrinha. A outra mula era a Cardana, que servia de montaria para o Geraldino. O Divino acompanhava a tropa a pé. Eles transportavam cachaça e rapadura para Piranga, onde entregariam a carga no Armazém Quintão, do Cícero Quintão, casado com a tia Rosarinha, filha do nosso avô Zé Maria, o dono da tropa.

Logo que chegaram ao terreiro da nossa fazenda, os animais ficaram um ao lado do outro para que a carga fosse descarregada. Os tropeiros retiraram a carga, colocaram a mesma em um cômodo próximo ao terreiro. As cangalhas também foram retiradas e colocadas na coberta do engenho. Depois de terem lavado os lombos dos burros, deram para eles um pouco de milho e os soltaram no pasto. Antes de começarem a pastar, os burros espojavam-se na terra, isto é, deitavam de costas e viravam de um lado para o outro. Como já era tarde, os tropeiros começaram a preparar o jantar. Embora o meu pai insistisse com eles para que jantassem em nossa casa, eles preferiram fazer o seu jantar. A única coisa que aceitaram foi o feijão já cozido e uns goles da branquinha, da fábrica do meu pai. Durante o preparo do jantar, o meu pai ficou conversando com eles sobre a vida dos tropeiros, pois já tinha, algumas vezes, acompanhado a tropa da fazenda Seringa, do meu avô José Maria Carneiro. Eu ficava prestando atenção nas conversas, mas o meu pensamento não saía da viagem que eu faria com eles. De manhã, depois de tomarem o café (desta vez a minha mãe Cici fez questão que eles tomassem o nosso café, na cozinha, servido com broa de fubá, requeijão e biscoito de polvilho. Tudo feito na fazenda.), os tropeiros foram buscar os burros no pasto para serem arreados e seguirem com a mercadoria para Piranga.

Após a entrega em Piranga, a tropa retornou à fazenda Baía onde iria novamente pernoitar, para o seu retorno à fazenda Seringa.

Na manhã seguinte, acordei cedo pois iria tornar-me um tropeiro por um dia. A minha mãe arrumou a minha trouxinha de roupas, o meu pai arreou a égua branca e após os tropeiros tomarem as providências necessárias, estávamos prontos para a partida. Antes da despedida, o meu pai pediu-me que passasse no bar do Totone e do Miguel e comprasse um pacote de cigarros "Continental", para dar de presente para o meu avô, que nessa época ainda fumava. A minha mãe me dava a última recomendação: -cuidado com o rio! não vá nadar . Ela referia-se ao rio Piranga, pois ele banhava a fazenda Seringa após receber as águas do rio Xopotó.

Despedimo-nos e pé na estrada. A minha égua ficava sempre ao lado da mula do Geraldino. Íamos conversando. Como eu conhecia todo o trecho até Calambau, ia mostrando-lhe as casas à beira do caminho e o nome dos moradores e dos locais. O Divino ia a pé e, quando a mula madrinha diminuía o passo, ele que estava próximo ao último burro, atirava um tolete (pedaço de pau) que acertava a cangalha da mula, e esta retomava o ritmo normal.

Avistando Calambau, paramos no morro dos Bastos, onde próximo ao boteco do Raimundo Caboré havia uma excelente mina de água, onde iríamos matar a sede. Aproveitei que o boteco estava aberto e comprei um cuité de amendoim torrado, para ir comendo na viagem. Chegamos a Calambau e, desde a entrada, já me sentia importante por ser tropeiro e torcia para que algum meu colega de escola me visse, pois iria morrer de inveja...

Em Calambau, os burros ficaram amarrados em árvores na entrada da cidade, na rua do Beco, hoje São Vicente.

Enquanto os tropeiros faziam alguma compra, montado na minha égua rumei para a casa da minha Vó Augusta, onde tomei mais um reforçado café servido pela sua auxiliar Marciana. Contei a elas que estava indo para a fazenda Seringa com os tropeiros de meu avô Zé Maria. De lá fui até o bar do ponto (do Totoni e Miguel Braz) comprar o "presente" para o meu avô, conforme pedido do meu pai.

Em seguida, juntei-me aos tropeiros e seguimos a viagem. Daí em diante, o cicerone foi o Geraldino pois eu não conhecia nada. Quando estávamos no alto do morro do Caquim (saída para Senador Firmino) fiquei admirando a vista de Calambau e do Rio Piranga. Depois de uns quatro quilômetros, o Geraldino me avisou que iríamos abandonar a estrada de Senador e entrar à esquerda, na estrada de Paula Cândido. Disse-me também que estávamos próximos à fazenda do Sô Guilé.

A próxima fazenda do nosso roteiro era a "Catas Altas", do Zé Brazinho. A estrada passava quase dentro de seu terreiro. Gostei de ver a grande roda de madeira que movia o engenho de cana, acionada à água.

Prosseguindo a viagem, o Geraldino disse-me que após a ponte sobre o rio Xopotó, iríamos parar à sombra de um bambuzal para comermos um feijão tropeiro. Esta conversa me fez " roncar a barriga", pois já estava com fome.

Antes de chegarmos à ponte tínhamos que passar próximo à fazenda do Juca Braz. Quando estávamos próximos à fazenda, o Geraldino observou que um dos burros estava mancando. Era o Penacho, um dos melhores da tropa. O negócio era pararmos na fazenda do Sô Juca para que fosse examinado o casco do burro.

Rumamos para essa fazenda. Lá estava, na varanda, o Sô Juca Braz, um dos maiores fazendeiros de Calambau. Depois das saudações, o Geraldino explicou ao Sô Juca o motivo de nossa parada e, então, ele perguntou-nos se já tínhamos almoçado. O Geraldino respondeu-lhe que não, e disse-lhe para não se preocupar porque já estávamos próximo do local onde iríamos almoçar.

- De jeito nenhum! respondeu o Sô Juca. Onde já se viu tropeiros de meu compadre Zé Maria passar em minha casa na hora do almoço e não almoçar. Ainda mais com o neto, filho do compadre Zé Carneiro e da comadre Cici.

Aí não houve mais discussão, a tropa foi colocada em uma sombra no terreiro. Antes de irmos para a cozinha almoçar, o Divino aproximou-se do Penacho, levantou a sua pata e pode ver o que estava fazendo com que ele mancasse. Era uma pequena pedra que estava alojada entre a ferradura e o casco. Com o auxílio de uma faca, ele retirou a pedra e o problema foi resolvido.

Fomos para a cozinha e lá estavam a Dona Ida e sua auxiliar Inácia já destampando as panelas para que nos servíssemos da deliciosa comida: o arroz socado no pilão, o feijão, a couve picada, o angu, o chouriço, o torresmo e o ovo caipira frito. Depois do almoço, nos foi servido um "pé de moleque". Ainda teve o cafezinho de rapadura servido na chaleira fumegante.

Despedimo-nos e agradecemos ao Sô Juca Braz e à Dona Ida pelo almoço. O Divino desamarrou, primeiro, o cabresto da Ruana, a mula madrinha, e esta tomou o caminho, seguida pelos outros burros.

Andamos mais ou menos um quilômetro e avistamos uma ponte de madeira sobre um rio. É o rio Xopotó, disse-me o Geraldino. Ele tem este nome até encontrar o rio Piranga a uma meia légua daqui. Daí prá frente continua com o nome de Piranga. Ele passa em frente à fazenda Seringa. Lá ele é bem largo. Logo à frente, deixamos a estrada que vai para Cruzes e entramos à esquerda, na estrada que iria acompanhar o rio até a fazenda.

Logo que entramos nesta estrada o Geraldino avisou-me que teríamos que parar na fazenda do Sô Juca Sabino, pois vovô Zé Maria havia comprado dele vinte sacos de milho e a tropa teria que levá-los. Andamos mais ou menos meia hora e chegamos à fazenda do Juca Sabino.

Fomos recebidos pelo Sô Juca, que foi logo dizendo para os tropeiros colocarem a tropa na sombra, pois o milho não estava todo debulhado. Fomos para o paiol, onde o Sô Juca possuía um debulhador manual que era girado com muita rapidez por ele. Lá pelas duas horas, o milho estava todo ensacado e colocado nas bolsas. Pronto para ser colocado na tropa. Foi aí que o Sô Juca disse:- Antes de carregar a tropa vamos até minha cozinha para tomarmos o café. "Ordem dada, ordem executada". Rumamos para lá. Na cozinha, encontramos a Dona Maria, esposa do Sô Juca Sabino, que nos aguardava com uma mesa de café, onde estavam os biscoitos de polvilho, broa de fubá mimoso, brevidade e queijo. Tomamos o nosso café, ouvindo o Sô Juca contar as estórias da região. Após o café, os tropeiros carregaram a tropa e rumamos para a Fazenda Seringa.

Notei que a tropa passou a andar mais depressa, embora carregada. Disse-me o Geraldino que a Ruana, pressentindo a aproximação da fazenda, passou a andar mais depressa.

Passamos pela fazenda Sossego, do Sr. José de Estevão, e já avistávamos os arredores da fazenda Seringa. Ao fundo, o rio Piranga emoldurando as terras da fazenda. Aproximamos de uma porteira, o Divino a abriu, e a tropa rumou para o terreiro da fazenda.

Já avistávamos, na varanda, os filhos da tia Lurdinha e da tia Nininha, prenunciando que as férias seriam maravilhosas...

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Murilo Vidigal Carneiro

Calambau/ novembro/2012

murilo de calambau
Enviado por murilo de calambau em 06/11/2012
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