Reféns da palavra

No seu livro Lessons of the Masters, George Steiner lembra que nem Sócrates nem Jesus Cristo, que ele chama de as duas figuras “pivotais” da nossa civilização (de pivôs, como no basquete ou nos crimes passionais), deixaram qualquer coisa escrita. São mestres cujas lições sobreviveram no relato de outros, Platão no caso de Sócrates e os evangelistas no caso de Jesus. Não existe nem evidência de que os dois soubessem escrever. A única, enigmática referência bíblica a um Cristo escritor está em João 8:1-8, quando, indagado pelos fariseus sobre o destino da mulher flagrada em adultério, Jesus finge que não ouve e escreve algo no chão com o dedo – ninguém sabe o que ou em que língua. Existe até uma velha piada, de Steiner cita, sobre um acadêmico moderno comentando o currículo de Jesus: “Ótimo professor, mas não publicou.”

O legado literário de Sócrates, via Platão, é um forma de mitos, o de Jesus em forma de parábolas. Dois meios de organização e transmissão oral de memória que a escrita diminui, transformando narrativa aberta em cânone e lição em dogma. Nos diálogos de Platão o pensamento vivo de Sócrates já se coagulou em filosofia, nos textos bíblicos a verdade poética de Cristo se petrificou em verdades sagradas, irrecorríveis. Mas o maior defeito da escrita seria de ter sabotado a memória como guia, roubando a sua função civilizatória de “mãe das musas”.

Durante muito tempo, os gregos desconfiaram da palavra escrita como linguagem cifrada de um mundo obscuro que só levava à danação diferentemente do que se aprende “de cor”, ou com a linguagem do coração. Homero, o inventor da literatura ocidental, era maior porque também nunca escrevera nada e suas estrofes inaugurais tinham sido transmitidas oralmente, de coração em coração. Mas isto pode ser outro mito. “Omeros” em grego, descobri agora, quer dizer refém. Homero, como o primeiro escritor do nosso mundo, seria o primeiro prisioneiro da maldita palavra grafada.

Meu convívio forçado com o computador, sua convivência, seus mistérios e seus perigos, me faz pensar muito sobre a precariedade da palavra. Pois um pré-eletrônico como eu está sempre na iminência de ver os textos inteiros desaparecerem sem deixar vestígio na tela. O computador nos transforma todos em reféns sem fuga possível da palavra e pode acabar, num segundo, como um dia inteiro de trabalho da pobre musa dos cronistas em trânsito. Que, como se sabe, se chama Ritinha, é manicure e faz trabalho de musa com bico. Ao mesmo tempo, nos transformou na primeira geração na História que tem toda a memória do mundo ao alcance dos dedos.

O computador resgata a memória como mestre da História ou, ao contrário, nos exime de ter memória própria, e decreta o domínio definitivo da escrita sobre quem a pratica? Sei lá. É melhor acabar aqui antes que este texto desapareça.

Luis Fernando Verissimo
Enviado por Aninha Torres em 14/11/2012
Código do texto: T3986115
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