UM BÊBADO FANTASMA

Eu acho que ainda hoje eu ouço com nitidez a voz rouca dele me chamando.

São Mateus naquela época não tinha energia nas casas e muito menos tinha iluminação pública. Eu acredito que naquela tempo no povoado não havia mais do que de três mil almas. Eu acomodei meu esqueleto lá por muito tempo.

Eu tinha medo de fantasmas, mas nunca acreditei neles. Tinha medo de bêbados porque os achava inconseqüentes. O certo era que sempre que podia evitava os cachaceiros, e os cantos escuros e de pouco movimento, isto somente por precaução.

Lamentavelmente para chegar a casa de minha avó tinha que inevitavelmente palmilhar um longo trecho de ruelas habitadas apenas por vadios cachorros; A casa dela, lá no alto da rua, estilo europeu, onde fiquei por muito tempo, era nos arredores da cidade.

Uma noite, depois de um sarau, voltava apreensivo para casa, de terço santificado e protetor na mão, quase cagando de medo nas calças. Seriam seis quadras que eu teria que vencer até chegar a casa de minha avó. A chuva ordinária fazia poças de água que eu, no meu andar apressado, pisava encharcando minha bota. A noite era terrivelmente escura e o silêncio caminhava nas pontas dos pés para evitar o barulho. Eu me guiava pelos relâmpagos que de vez em quando cuspiam chispas riscando o céu.

Tudo me assustava. Queria rápido chegar em casa.

A tensão era grande quando de repente, ali mais adiante, no riscar do relâmpago, vislumbro um vulto disforme amontoado na rua. Congelei, e com certeza pelo meu ânus não passaria nem pensamento.

Quando resolvi retornar uma voz bêbada chamou pelo meu nome.

- Será que estes malditos fantasmas tem agenda com os nomes de suas vítimas? pensei quase desfalecendo ao chão.

Aquela coisa chamou de novo pedindo ajuda, e então percebi que não se tratava de um fantasma e sim de um bêbado que por certo me conhecia.

Perdi o medo, e resolvi ajudar aquele miserável, até porque a inofensiva criatura estava completamente encharcada tanto por dentro quanto por fora.

Acheguei-me até a ele, inclinei-me para ficar mais próximo, e com o brilho do relâmpago pude identificar que aquilo ali era o filho do casal de idosos, meus visinhos.

Estava bêbado, sujo e completamente molhado. Fiquei com pena dele.

Com dificuldade consegui colocá-lo de pé, passando seu braço esquerdo por cima do meu ombro segurando sua mão, e com meu braço direito segurei-o pela cintura. Lá fomos os dois, cambaleantes, molhados, sujos, tropicando e por duas vezes caindo no lamaçal.

- Você é o único amigo que tenho! Com voz bêbada jogava elogios.

Conhecia-o de vista, mas no trecho até chegar a casa dele me contou sua triste história. Bebia porque sua noiva tinha deixado dele por um outro qualquer. Dei alguns conselhos, mas pouco adiantou, pois o bêbado, pelo que me parece, é mouco e só tem boca para lamentar, dizer impropérios, e para ingerir o líquido.

Entreguei a encomenda ao casal que muito triste e envergonhado me agradeceu.

Aquilo passou a ser uma rotina quando de minhas caminhadas noturnas. Eu até ficava contente porque sabia que o meu protetor contra os fantasmas, embora bêbado, estava sempre por ali esperando por minha ajuda. Eu já não tinha mais medo de fantasmas quando andava a noite por aquele trecho.

O bêbado deve ter um olho infra vermelho; Eu nunca o enxergava, mas quando me aproximava dele sua voz rouca, embaralhada, chamava pelo meu nome pedindo ajuda. Ele bebia todas que podia, e o combustível ingerido dava para ele chegar até ali apenas.

Ele acabou se tornando um fiel amigo meu e eu o seu confessor.

Um dia, como tantos outros, voltava de minhas noitadas. A noite fria e úmida vomitava um vento que ia morar cruel lá no miolo dos ossos. Não temia os fantasmas porque o meu amigo bêbado estaria, lá mais adiante, me esperando. Preparava mentalmente alguns conselhos para tentar convencê-lo a largar da bebida, melhorar de vida, e etc.

Caminhava rápido guiado pelo instinto de direção.

Cheguei e passei pelo local. Ninguém suplicou por mim. Parei e voltei. Procurei algum corpo estendido. Talvez o sono e a bebida tenha feito seu corpo adormecer. Gritei diversas vezes pelo seu nome, meus gritos ecoaram pelo espaço tendo como eco apenas alguns latidos distantes. Procurei em vão, e muito apreensivo rumei para casa pensando.

- Talvez alguma alma boa tenha passado e o levado para casa.

Antes de entrar em casa, percebi luzes de lampião e velas iluminando a casa de meus visinhos idosos. Alguma coisa me puxou até lá.

A porta estava aberta. Entrei e vi o casal de velhos afagando os cabelos do meu amigo que inerte estava na mesa entre quatro velas.

Ela me olhou, com lágrimas nos olhos, sem tirar suas mãos da cabeça do filho, disse:

- Ele não saiu hoje, faleceu agora a noitinha.

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 17/11/2012
Código do texto: T3991284
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