Perdendo a luta...para o botão curtir

Ontem uma colega me telefonou para discutir o caso de um paciente de 20 anos que havia sofrido um acidente de moto, com amputação traumática da perna. Para azar do garoto, além de perder a perna e ainda estar lutando para salvar a vida, ele ainda era do grupo sanguíneo O negativo, cujos estoques nos bancos de sangue raramente estão nos níveis ideais. Após mais de 40 transfusões e ter passado a usar sangue O positivo, a colega queria compartilhar a dúvida de quanto aquele jovem poderia receber de um sangue não exatamente ideal mas que ainda sim poderia salvá-lo. Menos de três horas depois, de outro hospital, uma colega ligou porque o caso se repetia, dessa vez com uma jovem de 20 anos, que embora não tivesse a perna amputada, também fora obrigada a receber sangue O positivo pela simples falta de estoque nas geladeiras do hospital.

Para ambos a consequência semelhante é a ocorrência de um fenômeno chamado alo imunização que fará com que eles rejeitem o sangue O positivo em transfusões futuras, mas que poderá ajudar a salvar suas vidas se o tratamento dos traumas causados por acidente de moto forem bem sucedidos. Para a ela a quase certeza de que, sobrevivendo, jamais se tornará mãe devido a essa mesma alo imunização.

O que há de diferente e que choca o médico “tornado frio” pela banalização do cotidiano, não é o fato corriqueiro de que jovens em motos estão comprometendo seu futuro e o futuro da sociedade que gasta fortunas cada vez maiores em recursos para salvar suas vidas e depois reabilitá-los precariamente. O que choca alguém acostumado à tragédia diária é o período em que esses dois casos aconteceram e suas associações possíveis com a sociedade insana em que estamos vivendo.

Gostaria de escrever um texto leve. Desculpem, não consigo. Perdi a luta contra o botão curtir.

Mas o botão curtir não é o culpado, é apenas uma opção bem vinda para uma sociedade que a cada dia escolhe estar na superfície dos acontecimentos, busca diversão instantânea e descompromete-se com o próximo, mesmo que essas opções de curtir estejam repletas de filosofia boa ou barata. É como se o que veio lá do fundo do poeta, do artista, do filósofo, se afogasse na superfície desse mar de banalidades que se chama redes sociais e que, sim, eu também frequento, por diversas razões, dentro dos meus limites, enquanto essa droga não for considerada ilícita.

Mas o que tem as redes sociais em relação a esses casos aqui relatados?

Há 13 anos trabalho nos bastidores. Sou uma das milhares de pessoas que trabalham sem reconhecimento para suprir a linha de frente formada por médicos cirurgiões no tratamento de diversas doenças que necessitam de transfusão como condição obrigatória para o sucesso do tratamento. Nesses anos, assisti ao fenômeno da doação como se assiste à mudança da maré. No mês de outubro os doadores de sangue voluntários escasseiam, para que voltem a aumentar na semana de 25 de novembro, quando se comemora a Semana Nacional do Doador Voluntário de Sangue, cujo dia é 25 de novembro e que suprirão os bancos de sangue do país para as festas de final de ano e suas inevitáveis tragédias causadas pelo álcool, imprudência, pelas estradas mal conservadas e pela violência bárbara que ainda graça na nossa sociedade.

O que me choca mais então, não é o fenômeno da escassez do sangue em determinados períodos críticos do ano. O que me tira o sono, o ânimo, a coragem, é que esses dois casos ocorreram justo na Semana Nacional do Doador, quando os estoques costumam ficar tão cheios que temos que gerencia-los com cuidado para evitar perdas. O período em que estamos deveria ter dado uma chance a mais a esses garotos. Não deu.

A sociedade está mudando rapidamente, não necessariamente para melhor, na medida em que a vida torna-se um bem cada vez mais descartável como todo o resto. O que “bomba” na internet, os rits instantâneos, geralmente vem repleto de palavrões, insinuações, banalidades e futilidades sem fim. Engraçadas é claro, divertidas. Mas esse é justamente o mecanismo de adaptação que essa oferta desenvolveu para imiscuir-se no tronco principal da sociedade e sugar sua seiva. É o pão e circo romanos. Se eu fosse publicitário não deixaria de frequentar as redes sociais dia e noite, é o lugar que tem o maior número de trouxas ligados, de curso superior ou não, pós graduados, cientistas, ávidos para consumir tudo e qualquer coisa. Eu entre eles.

Mas quando sou obrigado a rever a realidade, o que sinto é dor, tristeza, desesperança pois o que vejo nos lugares em que o uso é mais sadio, são famílias inteiras reunidas em torno de vídeos hilariamente imbecis que denigrem os valores, ainda que imperfeitos, construídos por nossos ancestrais ao longo de séculos e que custaram sacrifícios e vidas. Uma vida hoje não custa mais nada. Ninguém mais vê e a sociedade não mais responde aos chamados, senão pela necessária solidariedade, no mínimo pelo bom senso. A sociedade agora não somos nós, a sociedade agora sou eu....

Obs: Peço desculpas pelo desabafo, pelos erros, mas escrevi em um único suspiro e decidi publicar assim, com os erros do meu impulso. Agradeço a leitura. Rezem para que eu esteja errado