Fazendo plástica na alma

Nunca pensei em realizar uma cirurgia plástica. Ainda quando jovem, certa feita li uma entrevista com o Dr. Pitanguy em que ele dizia que faz plástica aquela pessoa que tem dificuldade em se aceitar. Confesso que concordei com o ilustre doutor na primeira hora. Não que eu seja um primor de formosura. Longe disso. Mas pensar numa internação, anestesia, vários procedimentos apenas para resolver uma ruga aqui, uma pelanca ali, uma gordurinha não sei onde... isso é demais prá minha cabeça. Um assombro!

Mas, nos últimos anos, eu comecei a sentir a minha alma cansada. Era uma coisa estranha: eu poderia dormir num final de semana até mais tarde, quem sabe dar uma volta , tomar um sorvete para baixar um pouco o estresse, até ouvir uma música transadíssma dos tempos da Bossa Nova – coisa mais equilibrada, melodiosa e doce ... ah! nada como a Bossa Nova ! Mas eu via que o meu caso estava longe de ter solução: era cansaço de alma mesmo.

Aí eu comecei a olhar o passado para identificar o meu mal . Observando minuciosamente os meus trinta anos na condição de professora de História percebi que, nos últimos anos, a minha concepção de mundo não dava mais liga com a realidade : os meus sonhos de uma sociedade mais equilibrada, fraterna e justa foram levadas ao sabor do vento quando as ideologias acabaram. Triste notícia! Os enganos tinham que acabar. A glamourização do socialismo tinha que ser questionada profundamente. O Muro de Berlim tinha que cair. E caiu. Mas os sonhos não. Os sonhos me moviam, me faziam acordar cedo com disposição e desejo de fazer , de partilhar algum conhecimento. A alegria de ver os meus alunos – muitos deles - se mostrando dispostos a novas construções, conhecedores das suas limitações, procurando algum saber com serenidade e respeito me sustentava e me dava brilho.

Por exemplo, nos suspiros finais da ditadura, eu dizia para os meus alunos para que lutassem pelos seus direitos e eles me aplaudiam. Trocávamos palavras gentis e que poderiam provocar crescimento em ambas as partes. Eu recebia panfletos das mãos dos meus alunos, convocações para greves ou outros movimentos populares, me contavam casos, histórias de vida. Trabalhei com operários, donas de casa, empregadas domésticas! Era um misto de sonho e alegria que me dava satisfação plena de chegar em casa com as roupas empoeiradas do giz e o salário baixo pouco me incomodava. Isso porque as mudanças sociais aconteceriam. Ea necessário ser sujeito do tempo. Era só uma questão de permanecer na luta constante por uma nova consciência.

Os meus alunos liam. Mas era uma literatura edificante . Permaneciam sentados na sala de aula e sabiam esperar.

O que fizeram com a juventude? Nos últimos tempos aprenderam a ter direitos e neca de deveres. Aprenderam reclamar sem a contrapartida do esforço e da dedicação. Causas? Nenhuma, a não ser pertencer ativamente à sociedade do espetáculo. Passou-se a olhar no jovem um consumidor com um potencial inesgotável e cheio de “não-me-toques”. Já ouvi mãe dizer que o colégio pouco faz pelo seu filho, mas o seu filho fez alguma coisa pelo colégio, madame, fez? Os professores fizeram e fazem de tudo para o seu filho, incluindo noites em claro para as correções intermináveis, leituras complementares, finais de semana que não acontecem para o lazer e para o melhor funcionamento da família. Os professores fizeram e fazem tudo para que o seu aluno se transforme numa pessoa integral, segura, consciente e presente no mundo. Tem professor que ainda sonha, como eu sonhei.

E aí vem aquele descontente e resolve ameaçar o seu professor, bater, xingar, humilhar. Humilhar quem faz de tudo prá você? É. Porque hoje o saber está pronto na Internet e nas diversas mídias, em tempo real, interativo, com dinamismo e na diversão dos jogos interativos. O professor não tem graça: ele pensa e faz pensar e convida ao novo, mas um novo que dá muito, muito trabalho porque para que as coisas tenham valor é necessário consistência, constância, crença e muito amor.

Depois inventaram uma propaganda com as pessoas levantando o dedo para questionar silenciosamente, com olhar quieto, seco e interrogativo, o porquê da falta de professores. Ora, faça-me o favor! Hoje o professor tem apenas que agradar, compreender, ser terapeuta, cuidador, bobalhão também e não desafiar intelectualmente para novas construções. E nem pode ficar bravo quando alguma situação lhe desagrada, senão traumatiza e o pai reclama, a mãe faz escândalo, a avó não se conforma.

Então eu resolvi fazer uma cirurgia plástica: uma plástica na alma.

Abandonei o magistério com a consciência de dever cumprido. Foi tudo muito sofrido nos últimos anos convier com uns tantos debochados, traíras, com caráter duvidoso. Me perdoem os escrupulosos e de coração limpo, mas os primeiros me cansaram sobremaneira. Mas até o final eu ainda recebia afeto e respeito de muitos deles.

Então eu resolvi ir prá galera: sem horário certo pra me acordar, me levanto cedo espontaneamente para viver mais. Continuo trabalhando com pessoas, no que acredito, dando atenção e cuidado no trato da saúde. Faço as pinturas em telas, destacando sobretudo paisagens, com as montanhas deslumbrantes da Serra do Tabuleiro da minha adotada Santa Catarina. Escrevo crônicas e as doces saudades de uma São Paulo que sempre me inspirou, mesmo nos nossos momentos mais difíceis. Uma São Paulo que me preenche a alma com as suas cores, dores, diversidade, cultura e encantamento. Uso da argila para fazer utilitários e esculturas. Presenteio. Invento novas receitas de chocolate. Exercito Tai Chi Chuan e descubro pessoas novas, com brilho radiante e que também sonharam e sonham muito mas se recusaram a ficar na rua da amargura. Leio novos autores, antes desconhecidos para mim. Pela primeira vez li um grande escritor japonês. Consigo ouvir profundamente os cantos dos pássaros que nunca abandonaram o meu espaço, mas eu estava surda para eles em função de uma responsabilidade sem fim. O mar se apresenta e me olha azul e poético e vem me cumprimentar todas as manhãs, em especial quando transito pela ponte. Ele abre alas porque sabe que eu quero passar.

E estou em ação, num movimento contínuo de quem trabalha, atua e descobre o amor verdadeiro pela arte de viver . Eu também me recusei, mesmo às custas de uma boa e dolorosa plástica, a sofrer uma amargura perene. Eu me recuso a fazer parte da sociedade dos shoppings e do deslumbramento pela aquisição. Pelas novidades tecnológicas que não trazem sabedoria. Porque a sabedoria verdadeira consiste no olhar, compadecer, aprender a perdoar, conversar com Deus à sombra do pé de manacá e percebê-Lo nos olhando através da figueira da praça XV em qualquer estação. Sabedoria busca a essência, a energia vital e isso não há tecnologia que resolva.

O Brasil varonil que me perdoe, mas abandonei a Educação. E vou vivendo num permanente sol de quase dezembro, com os meus novos sonhos e descobertas. E sempre desejando que a sociedade encontre o seu melhor destino. Um caminho muito mais feliz, com pessoas inteiras, belas, apaixonadas pela vida e com alguma compaixão pelos seus iguais.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 27/11/2012
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