Pequenos Burgueses

Na província de Cruz Alta, no longínquo século XVI, o império era uma monarquia ditatorial. Um período diferente, onde facebook, tablet e Michel Teló eram sucessos absolutos. Uma época em que o administrador do hospital era prefeito, os vereadores compravam votos, o lazer jovial era beber cerveja em posto de gasolina e as taxas de AIDS eram as maiores do Brasil. Ual! Mas bem, essa época já se foi. Há séculos!

Agora, na querida Cruz Alta, vivemos um novo século XVI. Um tempo que denominarei ‘a era dos pequenos burgueses’. O governo, nesta nova era, é representado pelos comerciários, agricultores, donos de hospitais e médicos. São eles que detêm o poder. Está como sempre foi. Terra de reis e rainhas. Terra de miséria e miseráveis. De pobres e desempregados. De desigualdades. O poder e grande parte do capital circulante, em Cruz Alta, concentram-se no bolso (ou na conta bancária) de alguns. Eles ditam ordens, em uma política centralizadora e nefasta. As famílias nobres, passadas gerações, vão enriquecendo infinitamente. O dinheiro se prolifera. Os pobres, cada dia mais empobrecidos, vão sobrevivendo de migalhas. O capitalismo é voraz. Nenhum movimento social brada contra essa porcalha. Os habitantes de Cruz Alta vivem como escravos. Os que não pertencem às nobres famílias terão destinos inglórios. Ou deixarão a cidade, migrando para grandes centros em busca de sobrevivência, ou trabalharão em setores secundarizados da pequena indústria. A população em Cruz Alta vive como os nordestinos.

Um município, pois, ultrapassado. Uma cidade que ficou atrás de outras pequenas cidades. Um município sem desenvolvimento, em que a gana dos ‘grandes’ reis resplandece a custa dos bravos trabalhadores. Ninguém enxerga, cegos que estão. Mas em poucos lugares brasileiros a desigualdade social é tão presente.

Isso mesmo, pequeno burguês, desigualdade! Nesta cidade, as pessoas estão morrendo de AIDS. E de tuberculose, e de pobreza, e de gripe, e de peste e de erro médico. Sim, ‘pequenito’ burguês, AIDS e tuberculose existem na vida real, não é exclusividade do seu nobre preconceito. Lá, em Cruz Alta, vilarejos miseráveis amontoam-se pelas beiras da cidade, ao longe do recatado centro. Não que não haja pobreza em outras cidades. Mas o que me desola é que em Cruz Alta os problemas são invisibilizados, como se não existissem. Cruz Alta é o novo Rio de Janeiro. Um Rio sem Copacabana. Um Rio favelado. Uma cidade de iniquidades. É proibitivo falar, enxergar, respirar ou sentir os problemas das centenas de pessoas mais desfavorecidas, que estão à mercê da sorte. Um problema naturalizado pelos podres poderes, como diria Caetano Veloso.

Poderosos que criticam o bolsa família, as cotas raciais e as habitações populares. Poderosos que estraçalham os menos favorecidos e que nunca ouviram falar em classes sociais. Poderosos que usurpam do Estado, quando seus filhos ocupam vagas em universidades federais ou quando recebem financiamento do governo para o plantio de milhares de hectares de soja. O poder em Cruz Alta é a pornoxanxada da década de 1980. São organizados, pois, em Rotary Clube, Lyons, Maçonaria, CDL, sindicatos e outros. Os poderosos vão à missa com suas famílias nucleares e felizes aos domingos. Os poderosos rezam. Rezam e pedem mais e mais poder.

Sorte a nossa, caro leitor, que essa era acabou, e estamos vivendo o glorioso século XXI.