A heresia

A HERESIA

Apocalipse era palavra medonha. Mais que hipérbole e eufemismo. Ainda trazia anjos e suas trombetas ameaçadoras, aquele quarto cheio de sombras, antítese da benignidade divina.

Era mulher regrada, devota. Poucas vezes atrevera-se a duvidar da benévola Onipotência. Quando os infortúnios avizinhavam-se invariavelmente descobria-se ré. Engraçado era a idéia do algoz não ameaçar a magnanimidade de Deus. De tempos em tempos essa imagem a importunava.

Jamais envolvera a família nesses devaneios. Julgava-os ainda muito susceptíveis, então lhes atenuava Deus. Lembrava-se de uma vez em que quase externara seus pensamentos apolinários a uma irmã de fé.

- Lazinha, já pensaste no poder de Deus?

Já pensaste poder tudo?

A amiga, absorta na dobradura de uns véus, respondera que o poder de Deus estava sobre seu povo para a benção e misericórdia.

Assustara-se, calando o descontentamento furtivo. Havia naquilo algo de récita. Lazinha também se escondia atrás da bíblia. Sentia-se-lhe apodrir a fé.

Olhava-se no espelho, “mulher querendo ser boa”. A disposição de amar a arrebatava com freqüência. Cantava com gosto. De dentro uma sensação caudalosa coroava seus bons dias. Via alguns semblantes embrutecidos amealharem vagueza e ternura à sua passagem.

De súbito, percebera que detinha em si toda a fúria: o amor do mundo. E não o quisera punir pela imperfeição. Incrédula, voltara ao espelho várias vezes, resistindo à blasfêmia.

Naquela tarde recebera Lazinha em sua incansável lida com os véus. Certa mudez depois foi interpelada:

- Que é que tens, ó mulher, pareces saltar torres!

- Lazinha, sou agnóstica!

- Ah! isso... E abrindo um véu alvíssimo, pede a Deus que Ele te liberta!

Claudia Lidroneta.

claudia lidroneta
Enviado por claudia lidroneta em 04/08/2005
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