O DESCONHECIDO

  (texto reeditado)

Uma das vantagens (ou desvantagem?)de morar no interior é o fato de quase todos se conhecerem.Ou quando isso não ocorre, em botecos e esquinas circular,verbalmente, folhas corridas ou fichas de cada elemento que não parece ser lá muito íntimo.
Apesar de tudo,costuma imperar a solidariedade entre a vizinhança,a camaradagem,etc...etc...
Já se vai um bom tempo .(Alguns anos atrás)era tardinha,quase noite, eu desbastava umas árvores na calçada em frente à minha casa.
Sentia uma certa dificuldade para cortar um tronco mais grosso,quando aproximou-se uma bicicleta.Nela um senhor aparentando pouco mais de 50 anos,magro,rosto ligeiramente enrugado e um sorriso largo delineado por um bigode que ,digamos,era ridículo.
Usava um chapéu de feltro, surrado,prezo ao pescoço por um barbicacho que disputava com o bigode o "gosto duvidoso".
Nunca o vira,nem fazia a menor idéia de quem fôsse a figura.
Cheio de intimidades,foi assim se dirigindo :
_Pelêja dura,heim?..."G o r d o" - Passe-me o machado e eu te darei uma mãozinha.
Sem pestanejar entreguei-lhe a  ferramenta .Ele ,dando uma cusparada nas mãos ,esfregou-as e "desceu" o objeto  cortante  no tronco.Em poucos minutos o viçoso estava no chão.
Olhou-me com superioridade e num tom irônico disse-me:
_Tá do gosto?... "G o r d o".
_Muito bom; respondi. Quanto devo pelo trabalho? Perguntei-lhe.
_Imagina!,não me deve nada.Fiquei mesmo é com pena do amigo.Afinal,"bolear" um machado bem no jeito,não é pra qualquer um.E...Você tem cara de quem não sé dá lá muito bem com o  instrumento rsrs... Depois,tem aquela coisa,né?"Uma mão lava a outra e as duas juntas lavam a cara",não é mesmo?A citação da frase de efeito emoldurou-se em largo sorriso embigodado.
Observando aquêle seu chapéu já "bem rodado"(ensebado) ,lembrei-me de outro chapéu ,quase novo ,que pertencera a meu finado pai."Usado somente em ocasiões especiais",conforme êle dizia, ficara entre os seus pertences .Ofereci ao "agora meu amigo" e êle de pronto agradecendo,prontificou-se a vir buscá-lo no dia seguinte.
Um pouco antes de sair,o abusado sentiu-se no direito de dar-me um tapa de leve no abdomem,acompanhado da recomendação:
_Continue a desgalhar o que sobrou,"G o r d o"...Vai ser bom pra dar um jeito nesta barriga.Rindo ,sumiu na estrada feito um zumbi ciclista. Claro, não gostei muito da intimidade mas apalpando-me,admiti que a "barriguinha" desenhava uma ligeira proeminência.
No dia seguinte,encantado com o chapéu,alisava-o,mirava-se no espelho...Num tom de contentamento foi dizendo:É um "Ramenzoni" legítimo! Vou usá-lo "somente em ocasiões especiais".Confesso que senti um estranho arrepio diante da frase,minha velha conhecida.
Desde então,não mais o vi,nem mesmo fiquei sabendo o seu nome,creio nem êle saber o meu,já que insistentemente chamava-me de gordo.
Tarde de um domingo qualquer. Durante minha caminhada,cruzando por um terreno baldio,observo um homem  acocorado vigiando um cavalo no pasto,prezo a uma corda.Nada que me fosse do interesse,prossegui sem dar muita atenção à figura.De repente,ouço uma voz conhecida:
_Dando uma caminhada?...G o r d o!
Olho para o lado e quem vejo por ali? Êle!...O senhor da bicicleta,do machado,do bigode ridículo,do sorriso de cangaceiro....Achego-me para cumprimentá-lo.Está ,agora ,todo produzido.A calça com vinco é presa por um cinturão de fivela larga e reluzente.Destaca-se em saliência,a figura de um cavalo.Camisa branca e...O "Ramenzoni legítimo", na cabeça.Impecável!...A ocasião deve ser especial,pensei.Recendia a um cheiro forte de loção e havia se desfeito daquele bigode ridículo.
Entabulamos uma ligeira conversa,relembramos o galho da árvore naquela tarde e êle confidenciou-me estar viúvo.De certo modo,segundo suas palavras.Apesar de não compreender muito bem esta "viuvez de certo modo",calei-me.
Proferiu a sua pérola,retirando o "Ramenzoni" da cabeça em sinal de respeito à falecida .
A seguir completou:
_"Mas!...é a vida,né? G o r d o. Morta,ela...Vivo,eu. E partindo pra outra .Obviamente que tais divagações ,sinistras, vieram envoltas naquele sorrisão, sua marca registrada.
Retomei o caminho e já ia distanciando-me quando meus ouvidos foram atingidos pela recomendação:
_Caminhar faz bem,né? G o r d o. É bom pra saúde além de te ajudar a perder essa "barriguinha"!...Kkkkkkkk.....
Confesso não ter achado a menor graça mas,sugestionado, depois de algumas apalpadelas abdominais tive de render-me à constatação do "mala desconhecido". Percebi uma proeminência agora bastante acentuada.
Apesar de tudo,admito que o "desconhecido" é  mais um  destes  tremendos figuraços  que  cruzam em  meu  caminho.