Eu não sou cachorro não

Os quadros da Força Aérea Brasileira, sempre abrigaram pessoas de alto gabarito. José da Silva Mota é uma delas. Dedicou-se de corpo e alma à FAB e, ao longo dos anos, realizou dois sonhos: mecânica de aeronaves e música. Exímio mecânico, prestou serviço em diversas bases aéreas pelo Brasil afora; músico dedicado, sempre colocava o coração nos solos e acordes do trombone de vara.

Motinha é pessoa simpática, afável, inteligente e, virtude maior, bom de copo. Motinha também é mulherengo; costuma dizer: “Bonitas, não; mas feias, nunca tive menos de três”.

O militar casou-se ainda jovem e constituiu família; sua esposa, Gertrude, o acompanhou em grande parte da vida nas andanças entre uma e outra base militar.

Certo dia - ninguém sabe porquê - o seu casamento chegou ao fim sem foguete, sem retrato, sem bilhete, sem luar nem violão – sem confusão também. Motinha saiu de casa pra nunca mais voltar. Seu relacionamento com os filhos continuou irretocável; além de custear a vida dos rebentos, sempre tiveram carinho e atenção.

O casal, outrora apaixonado, passou mais de quarenta anos sem encontros ou troca de palavras. A vida se encarregou de colocar Motinha à frente de Gertrude. Ele, agora, com 82, e ela, com 79, foram convidados para o primeiro aniversário da neta caçula. O filho, Saulo, exigia a presença de ambos na festança e, assim, foram tomadas todas as providências para que o reencontro se desse em alto nível.

Para evitar problemas, Gertrude foi acomodada na casa de Saulo e Motinha na casa de amigos. No café da manhã de sábado, dia do aniversário da neta, alguém teve a idéia de reunir toda a família em confraternização. Às mesas espalhadas pelo arborizado quintal já se encontravam filhos, genros, noras e netos do casal; só se registravam duas ausências: Saulo e Motinha. O primeiro tinha saído em busca do segundo. A expectativa estampava as fisionomias presentes: “Como seria aquele reencontro?”

O portão se abriu e Saulo entrou acompanhado de seu pai. Motinha saiu distribuindo beijos e abraços. Dirigiu à ex um leve aceno e balbuciou um quase inaudível “como vai, você”. Gertrude baixou os olhos.

Motinha, durante o desjejum, fez um atencioso e educado comentário:

- Hum..., este cuscuz está delicioso... Foi Gertrude quem fez?

Ninguém respondeu. O clima estava, digamos, semi-tenso.

Motinha, querendo atravessar aquelas cumulum nimbus à mesa, dirigiu-se a Gertrude:

- Nossa, você está muito bem. O tempo tem sido muito generoso com você...

Nenhuma resposta ou comentário novamente.

Nosso herói, agora incomodado com o fato de ser ignorado em suas educadas observações, levantou-se indignadamente:

- Gente, estou sendo tratado como um animal; na verdade o tratamento que estou recebendo é pior do que se eu fosse um quadrúpede... Acho que na próxima encarnação eu quero ser cachorro.

Gertrude colocou a neta no colo e, baixinho, como se estivesse falando com seus botões, balbuciou:

- Quem disse que pode repetir?

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Aroldo Pinheiro
Enviado por Aroldo Pinheiro em 08/03/2007
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