O AZARADO

O texto a seguir foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

O AZARADO

Devia ser meia-tarde quando chegamos ao seminário de Rio Negrinho, nosso destino, e eu quedei mudo por instantes diante daquele casarão enorme. Achei-o lindo em sua cor ocre e aberturas pintadas em marrom. Era uma construção de dois pavimentos e compunha-se de duas alas em forma de L sobre ampla escavação a meia altura da colina coberta de pinheiros nativos, a mais ou menos cento e cinquenta metros da estrada. Olhei ao redor e estranhei a falta dos morros e aqueles pinheiros altos, tão raros lá no meu torrão. Parecia-me estar em outro mundo, mas sabia que aquele seria meu novo lar. Era ali dentro que eu iria ensaiar os primeiros passos de minha caminhada.

Quem nos recebeu com efusão foi o Padre Reitor, que nos cumprimentou um por um com largo sorriso antes de encaminhar-nos pros dormitórios, onde destinou a cama e o roupeiro a cada um, mostrou os sanitários e os lavatórios e depois nos deu tempo pra desfazer nossas malas, ajeitar as roupas e arrumar as camas, no que fomos, os novatos, orientados pelos veteranos, já conhecedores do estilo da casa.

Chamado a outro compromisso, o Padre Reitor nos deixou entregues aos nossos afazeres.

Vendo-se, porém, livres da presença dele, alguns meninos, dos mais peraltas, começaram a virar cambalhotas por cima da cama, saltando em pé do outro lado. Depois que terminei de arrumar minha cama e ajeitar as roupas no armário, eu fiquei apreciando a brincadeira e acabei gostando. Quando me joguei pra primeira viravolta, a maldita cama estalou e foi pro chão comigo. O susto não foi só meu. O estalo foi forte e esfriou os ânimos de todos, que se mandaram de fininho e me deixaram ali sozinho com meu azar e a marca do meu crime.

“Que merda”, pensei lá com meus botões. “Já no primeiro dia! ‘Tô começando bem”.

Inconformado com a falta de sorte, eu me ajoelhei e me pus a verificar a causa. Tudo bem que eu fosse maior e mais pesado que os outros, mas a ponto de quebrar a cama não.

As camas tinham cabeceira, pés e traves laterais de madeira roliça, dessas que ainda hoje se veem nos muitos alojamentos por aí.

Não demorou muito, chegou o Padre Reitor acompanhado de um bando, com certeza dos fofoqueiros que lhe levaram a notícia, loucos pra ver qual seria o meu castigo.

— Que belo serviço, hein, seu... Qual é mesmo seu nome? — perguntou com raiva.

— Pedro. Pedro Corrêa — respondi humilde.

— Pois olha, seu Corrêa, você vai já escrever para seus pais, pedindo dinheiro para pagar essa cama e depois ficar de castigo...

Ajoelhado eu estava e ajoelhado fiquei e, ainda com a cama erguida, pedi que ele chegasse mais perto.

— Olha, Seu Padre, o senhor ‘tá vendo aqui este pedaço de arame? ‘Tava no chão, bem aqui embaixo do quebrado. Veja aqui na madeira a marca de onde ‘tava amarrado. E repare também que a rachadura é velha. Lá dentro tem até teia de aranha, olha. O senhor pode vê que eu tive mais azar do que culpa. Eu posso até mandar a carta, mas...

— Sabe, você daria um bom advogado ou detetive — falou o Padre sorrindo e batendo-me nas costas.

Os meninos que o acompanhavam olharam-me uns com cara de decepção pelo espetáculo perdido, outros com ares de admiração. Advogado eu já sabia o que vinha a ser, mas detetive não. Por isso eu fiquei na dúvida se ele tinha me elogiado ou xingado.