A casa das minhas nonas

Deveria constar no Estatuto de direitos da criança e do adolescente que toda criança tem direito a uma, pelo menos uma, avó muito legal, ou a uma avó que tenha uma casa muito legal, já ajuda bastante também.

Eu tive duas avós um tanto severas, não muito dadas a mimos, mas também não por maldade, simplesmente por cultura.

A imagem que guardo das duas na minha lembrança é que elas estavam sempre trabalhando muito, limpando, cozinhando, lavando. Uma delas fazia até macarrão em casa todo dia para o “brodo” do almoço, sim, eu disse todo dia, pensa? A casa de ambas estava sempre limpinha e cheirosa. E a comida? Ah!!! A comida!! Sempre muito boa!! Com aroma e sabor impecáveis.

A minha avó materna, a que eu chamava de vó, na minha época de infância morava em Santa Terezinha, próximo a Foz do Iguaçu, no Paraná.

A cidade era daquelas que começam na beira da estrada e que terminam numa rua só. A casa era de madeira, simples, mas ampla, mais ou menos no meio do terreno. O quintal era de terra batida, vermelha, o terror da minha mãe, e tinha algumas árvores frutíferas. Lembro do pé de lima, da laranjeira, do pé de vergamota (era assim que meus avós pronunciavam). Minha avó não deixava a gente subir nas árvores, talvez porque éramos meninas, ou por medo da gente cair, aí meu avô subia nas árvores e tirava um monte de mexerica, laranja pera e lima, aí a gente se esbaldava chupando dúzias cada um.

Na frente do terreno meu avô abriu um açougue e ali foi a primeira vez que me deparei com a procedência da carne das minhas tão maravilhosas refeições diárias. Sim, porque até então sei lá de onde eu achava que vinha a carne que eu comia. Talvez da panela? Não sei. Criança é assim. Pensa por exemplo que o leite brota na caixinha de tetra pack.

Mas o bom do açougue era um tal de “torresmo” que meu avô fazia para vender. Era algo feito com uma mistura de carnes, miúdos, banha, toucinho, tudo suíno, que depois de cozido, ou frito, não sei, ele prensava numa lata redonda e “desenformava” em cima de uma tábua grossa de madeira, aí ficava com cara de “bolo” salgado e era vendido em fatias.

Sempre que o açougue ficava sem ninguém, inclusive sem meu avô (naquele tempo isso era possível) e eu tinha uma chance de entrar, eu surrupiava umas lascas do tal torresmo. Uma delícia!! O sabor era próximo de uma pururuca bem feita, mas muito melhor. Nunca mais vi isso na vida.

O fundo do terreno dava para várias canchas de bocha e era um lugar proibido para as crianças da vizinhança. Claro que uma vez eu não resisti à terra fininha e vermelha e fui brincar nas canchas. Levei um belo pito da minha mãe e fiquei sem entender nada, mas depois ela explicou que não se podia ficar pisando nas canchas porque estragava a “pista” da bocha e os nobres senhores de Santa Terezinha iam ficar fulos da vida.

A casa da minha nona, assim ela era chamada por causa da descendência italiana, era mais legal ainda. Ficava no bairro Floresta, em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, minha terra. Tinha um quintal grande nos fundos com muitas frutas: um parreiral com uvas pretas, rosê e verdes, figos, amoras, morangos e pêras. Tinha também uma grama fininha e fofa no chão que quando amanhecia ficava cheia de gotas de orvalho e o cheiro era muito bom.

Havia ainda um forno e um fogão a lenha em alvenaria onde minha nona fazia uvada e figada (era como chamávamos geléia de uva e de figo) num tacho enorme.

Na frente da casa ainda tinha um jardim muito bonito, com flores e uma entrada na lateral com um caminho que passava por baixo da casa pra sair no quintal dos fundos. Essa passagem era sustentada por um arco feito de tijolos enormes, lindos! A casa era de madeira também, só o alicerce era de alvenaria. Mais bonita e mais suntuosa do que a da minha avó, com tábuas grossas de madeira no piso, mais pitoresca também pois tinha porão e sótão, tudo o que uma criança quer na vida.

O porão não era subterrâneo, ficava no mesmo nível do quintal dos fundos, mas era sombrio, úmido, cheio de quinquilharias do meu nono, e meus primos não poupavam histórias apavorantes sobre o lugar, então eu tinha medo. Porém não tinha jeito, o percurso era inevitável porque para ir ao banheiro era necessário descer uma escada de dois lances, sendo que no primeiro lance ficava o “banheiro de tomar banho”, só com o chuveiro e embaixo do segundo lance de escadas tinha o banheiro propriamente dito, só com a privada. Não muito prático, mas com uma certa lógica, e ali já era o porão. Pensa na tortura que era ir à noite ao banheiro sozinha?

Uma vez estávamos todos reunidos, tios, primos, meus nonos, meus pais, num jantar em que uma mesa enorme foi montada no tal porão pra caber todos os adultos, e a criançada ficou em outra mesa na parte de fora da casa, na área que dava para o jardim nos fundos.

Lá pelas tantas um dos geniozinhos teve a idéia de juntar as folhas secas que cobriam o terreno e fazer uma fogueira pra gente brincar e assim fizemos.

Alguns correndo em volta, outros pulando a fogueira, e todos nós naquela algazarra quando de repente vejo meu nono correndo atrás da criançada. Na minha inocência pensei que ele estava brincando e comecei a correr também, do nada levei uma cintada nas pernas e só aí percebi que ele estava correndo atrás de todos nós para bater. Saí à procura da minha mãe aos prantos, inconsolável, afinal eu nunca tinha apanhado na vida, que dirá do meu amado nono.

Depois daquela muvuca toda é que o destempero do meu nono foi esclarecido. Demos fogo nas tais folhas secas inocentemente mas a fogueira foi montada embaixo do parreiral. Imagine o desastre que poderíamos ter causado!

Meu nono era uma figura muito legal e um homem bonito. Carequinha e de olhos ofensivamente azuis, tinha um bom humor admirável. Eu gostava de vê-lo conversar com meu pai em italiano, eu não entendia nada, mas sabia que a conversa era agradável porque eles sempre caiam na gargalhada. Ele sempre fazia alguma graça pros netos e eu ria muito quando ele ficava paradinho, com os olhos revirados para cima mexendo só as orelhas para cima e para baixo. Não entendia como ele conseguia fazer aquilo.

Voltando à casa, entre os dois lances da escada de acesso ao porão tinha ainda uma janela pequena, basculante, da qual eu fui arremessada quando era bebê. Minha mãe já contou isso muitas vezes, mas ainda é legal de ouvir.

Diz ela que meu pai estava brincando comigo e me colocou no parapeito da janela e falava para eu me “jogar” para que ele me pegasse nos braços.

Eu ria e me jogava num “upa” gostoso de pai. Tudo ia muito bem até que eu me desequilibrei e caí para trás abrindo a janela, que era basculante, e despencando por mais ou menos 2 metros de altura para o lado de fora da casa. Meu pai desesperado começou a gritar e todos da casa vieram, mas não entendiam o que estava acontecendo. Ele não conseguia explicar e não tinha coragem de ir ver o que tinha acontecido comigo, até que alguém ouviu meu choro e saiu em busca da fofucha aqui e lá estava eu, caída dentro de uma banheirinha de nenê cheia de fraldas que estavam de molho. O máximo que me aconteceu foi ter tomado, além do susto, um pouco de água com sabão. Talvez eu tenha perdido algum parafuso com a queda, mas nada foi comprovado. Rsrsrs

Ainda na casa da minha nona o sótão era o meu lugar preferido. Arejado, cheio de luz, cobria a casa de ponta a ponta, e por isso tinha janelas enormes na frente e nos fundos. A parede das laterais era baixa devido ao forro que seguia o formato do telhado de duas águas, e haviam algumas tábuas soltas, então a gente conseguia tirar uma ou outra, entrar e ficar andando pelo forro da casa, olhando pelas frestas as pessoas lá embaixo, quietinhos, porque se meus pais ou meus nonos descobrissem, era bronca na certa.

Conta minha mãe que esse era o lugar onde meu nono guardava as compotas de pêssego que ele fazia para vender e uma vez meu pai furou as tampas das compotas com um prego para tomar a calda do pêssego, o que estragou todos os doces e causou um prejuízo danado, mas a figurinha carimbada não foi descoberta. Só depois de muito tempo meu pai assumiu a traquinagem.

A casa por ser de madeira rangia a noite toda e isso me dava um pouco de medo, mas mesmo assim eu adorava dormir no sótão. O acesso era por uma escada estreita e a gente gostava de descer e subir correndo pra fazer barulho, mas isso raramente acontecia pois éramos educados para não fazer bagunça na casa dos outros, e não fazíamos.

Um dos degraus desta escada tinha o espelho móvel para disfarçar uma gaveta esconderijo, muito misteriosa e intrigante!! Fruto das artimanhas do meu nono para guardar dinheiro e coisas de valor em casa.

As camas eram enormes, de ferro e com molas que rangiam, ao invés de estrado de madeira, o que deixava a cama mais fofa e gostosa pra pular.

De manhã cedo ao abrir a janela que dava para o jardim dos fundos, havia uma névoa que se formava baixo e chegava a tocar a copa das árvores, deixando a paisagem úmida, inebriada, bucólica, silenciosa, linda!

Na cozinha lembro-me das panelas de ágata vermelha fumegando no fogão, e do bife à milanesa da minha nona, simplesmente incomparável. Da pequena mesa de madeira também vermelha, com gaveta na lateral onde minha nona guardava o pão feito em casa e o queijo parmesão, que eu sorrateiramente sempre furtava uma lasca também.

A geladeira era antiga, vermelha, com aquela alavanca comprida na frente que a gente puxava com força para abrir. Sempre tinha doce de leite “mumu” que era vendido numa embalagem em formato de almofadinha de plástico. Para utilizar minha nona cortava uma das pontinhas e apertava para cobrir a fatia de pão com o doce. Uma delícia! Mas delícia mesmo era pegar o doce escondido da geladeira e apertar forte pra sair um monte de doce na boca, colocar de volta na geladeira e correr pra comer escondido, como se ninguém fosse descobrir quem eram os larápios. Um manjar dos deuses!

Tinha também nata batida pra passar no pão, geladinha era muito bom. E às vezes tinha mandolate, um doce parecido com barra de cereal, só que de castanha ou amendoim e mel. O mandolate e a nata ainda existem, são vendidos em mercados no Sul, mas não têm o mesmo sabor da infância, claro. Engraçado como as coisas mudam, ou o nosso paladar muda. Ou como a nossa percepção sobre as coisas pode ser subjetiva.

Meu nono faleceu antes da minha nona e eu já morava em São Paulo então só meu pai foi ao seu enterro. Quando entrei a primeira vez na casa deles depois da sua morte parecia que eu ia encontra-lo em algum canto da casa, ou no quintal. Demorei para admitir que ele nunca mais estaria ali.

A casa deles não resistiu ao tempo e teve que ser demolida porque depois que eles morreram ficou vazia por muito tempo e consequentemente sem manutenção. Aí já viu, casa de madeira sem cuidados é prato cheio pra cupim. Por reclamação dos vizinhos e antes que ela caísse, foi derrubada. Quando soube disso deu uma dorzinha no coração. Ainda bem que sobraram as muitas boas lembranças das aventuras da minha infância e estas nem os cupins destroem.

Por isso eu recomendo aos avôs, avós, nonos e nonas de plantão: sejam legais com os seus netinhos ou tenham uma casa bem legal, com esconderijos e árvores para alimentar a imaginação deles.

Podem dar umas broncas aqui e ali para manter viva a relação hierárquica (rsrsrs), mas podem também deixar passar algumas traquinagens vez em quando, afinal como sempre digo para as minhas irmãs: educar é para os pais; tios, tias, avôs, avós, dindos e dindas foram feitos para estragar a criançada.