Pelegos e Queixadas: o cimento das almas
Era uma vez um lugar…Lá moravam nossas famílias, ganhávamos nosso pão, vivíamos nossos sonhos. Quase todos trabalhavam no mesmo lugar, uma grande fábrica de cimento. Era enorme, dominava a paisagem,dominava a comunidade. Na hora do almoço, nós, os filhos dos trabalhadores, fazíamos um longo roteiro para levar as “marmitas” para que nossos valorosos pais pudessem se alimentar e continuar trabalhando pelo resto da tarde. A comida, embora simples, era cuidadosamente  preparada e separada, item por item por nossas mães. Passávamos por um túnel sob a estrada de ferro e ao longo de um pequeno riacho, até chegarmos ao grande refeitório. Talvez o roteiro fosse considerado perigoso hoje em dia para crianças de nossa idade. Entretanto naquela época ainda havia anjos que cuidavam de nós. Não era obrigação, gostávamos de fazer isso, era parte do grande sonho que é a infância.
O que nós não sabíamos na época, era que a fábrica, ao produzir o cimento, jogava o resto do pó sobre nossas casas, nossas ruas, nossas plantas. Era como se tudo fosse cinza-esverdeado. Os arames das cercas tornaram-se três  vezes mais grossos do que  eram originalmente. As ruas eram cimentadas ou se tornaram, não porque quiséssemos, mas simplesmente porque o pó não parava de cair. As folhas das plantas eram todas da mesma cor, a cor do cimento. Flores só as que estavam dentro de casa. Todos passaram a reclamar, exigir uma solução. Esse tipo de consciência não era tão forte naquela época mas algumas pessoas eram valentes, lutavam e sabiam que era tudo um problema de ganância: a fábrica não queria gastar dinheiro com os grandes filtros industriais. O cimento era tanto que começou a entrar em nossos pulmões, nos pulmões de nossas crianças, em nossos olhos, em nossa pele.  E ainda assim, precisávamos da fábrica, do trabalho.
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Um dia, porém, o cimento entrou em nossas almas. Por várias razões, os empregados resolveram entrar em greve. Não foi uma greve qualquer, foi uma longa e interminável greve. Não foi uma greve qualquer, foi uma greve que mudou a nossa cidade. Não foi uma greve qualquer, foi uma greve que nos transformou por dentro e por fora. Foi aí que o cimento endureceu em nosso interior tanto quanto endurecera em nossos pulmões. As pessoas se dividiram. Umas achavam que a greve deveria ir até o fim, outros achavam que os trabalhadores deveriam retornar ao trabalho, que “trabalhar era preciso”.  Dividiram-se  as pessoas entre “pelegos” e “queixadas”, os que queriam voltar a trabalhar e os que queriam continuar a paralisação até o fim. Foi triste. Amigos se tornaram inimigos, parentes e amigos se separaram, passaram a “olhar torto”, a falar coisas... Cada um, de cada lado, tinha suas razões. Foi aí que, mais do que nunca, sentimos a dureza do cimento. Passamos a ter almas de concreto. O cimento, definitivamente, tinha invadido tudo: o corpo e a alma.
Muito tempo se passou e, claro, de uma forma ou outra, tudo se resolveu. Não sei quantas pessoas ainda se lembram dessas coisas tristes, não sei se ainda há gente com rancor em Perus, onde tudo aconteceu. Eu sei que o cimento das ruas, das plantas e das casas, embora com dificuldade, um dia você pode limpar. Quanto ao cimento das almas, não sei. Não sei se passa de pai para filho, se amolece com o tempo. Eu só sei que esse cimento prejudicou nossa gente mais do que os acidentes de trem, do que a política, do que tudo...Claro, estou falando do cimento da alma... Espero que os filhos e netos de Perus - os filhos da terra - tenham se esquecido desse capítulo triste de nossas vidas, para sempre.