O QUE ENXERGUEI NO DOMINGO
Flavia Costa


Acordei em um domingo, semanas atrás, mais cedo do que o costume. Não estou certa, mas acho que alguma britadeira inoportuna me despertou, só pode. Tentei resgatar o sono, mas, por mais que tentasse, não consegui persuadi-lo, o bandido não é corruptível quando madruga em pleno domingo. Porém, recusava-me, àquela hora, sair do quarto e cumprimentar o dia, então, resolvi curtir o quentinho das cobertas enquanto olhava para o teto. A iluminação, devido ao contraste das persianas fechadas e do dia solar que lá fora nascia, lembrava uma sombra mal definida. Fiquei entediada de analisar aquele quadrado que se horizontalizava acima dos meus olhos e o lustre pendente no centro, pouco atrativo, constatação resultante da própria estética do objeto e da parca luz ambiente que não me permitia enxergá-lo em minúcias. Então, levantei-me e abri a persiana e a janela, deixando entrar a claridade do dia e voltei para a cama, não abandonaria minhas cobertas tão cedo.

E se você pensa que depois disso eu teria algo para apreciar de fato, saiba, o meu quarto fica nos fundos da casa, e tem uma paisagem de fazer inveja a qualquer um que durma em quartos sem janelas: um muro, a menos de dois metros de distância, chapiscado com britas e manchas esverdeadas devido à ação do tempo. Espetacular, não?

Ironias a parte, não sei quanto a você, mas penso que o ideal seria que em todas as casas os quartos fossem localizados no andar superior, assim, todas as manhãs, ao acordar, poderíamos abrir as janelas e ver o dia além de planos horizontais e muros que vendam. Enxergaríamos as montanhas, os baixos e altos relevos, picos e depressões, as construções e caminhos mais ao longe e, também, teríamos consciência dos prédios e árvores bem a nossa frente, obstáculos para uma visão mais ampla e detalhada. Evidente, sempre poderíamos esperar pela queda ou derrubada desses obstáculos, assim como o surgimento de novas edificações, isso acontece tanto por aí, por que não em relação ao nosso ponto de vista, não é mesmo? Além disso, árvores não precisam deixar de existir para uma visão melhor do mundo, elas podem ser podadas. Certamente, após algum tempo, crescem galhos em novas direções, alterando novamente a paisagem, um desafio constante no olhar de cada dia. Mas, mesmo assim, se pudesse escolher, gostaria sempre de amanhecer com a possibilidade de enxergar além do andar térreo, afinal, antes uma visão alterada e ofuscada pela presença de novos galhos do que uma vista constantemente bloqueada por muros.

Mas, gostando ou não, o muro estava ali, bem a minha frente, a opção era olhar para ele, fechar os olhos que não queriam dormir, ou ficar olhando o lustre  no teto que, depois que abri a janela, tive certeza, não tinha graça nenhuma. Optei pelo muro que apesar de não ser bonito, trazia-me recordações. Um muro que faz enxergar o passado? Você deve estar pensando que eu enlouqueci, mas, calma, eu explico: a barreira de concreto foi também a parede dos fundos da antiga casa em que eu morava. Uma minhoca em forma de L, construída na divisa, com um banheiro e sete cômodos enfileirados que desconheciam a palavra corredor ou, pelo contrário, conheciam tanto que eles mesmos decidiram ser o próprio. Resumindo, um projeto de privacidade nas extremidades que, de tão útil e prático, foi derrubado e do qual restaram apenas as paredes dos fundos e das laterais, que perderam as cores e ganharam chapiscos em brita tornando-se apenas muros, mas que ainda guardam as pilastras que dividiam os cômodos. E ali deitada na privacidade do quarto da casa que tomou o seu lugar, e que em nada lembra uma minhoca, consigo visualizar alguns trechos.

E foi justamente passeando por entre as pilastras que percebi uma fenda na parede que um dia fez parte do leito da minha infância. Aliás, um quarto sem janelas, pode isso? O cômodo era o terceiro segmento no corpo da minhoca, e dividia o status com o banheiro que ficava na parte da frente, relegando-me ao fundo e enclausurando-me entre paredes, portas e vãos. Não sei se era esse o motivo, mas, naquela época, os meus sonhos, quase todas as noites, eram pesadelos assustadores e, por mais estranho que possa parecer, eles se passavam numa espécie de TV virtual que era projetada, justamente, naquela parte da parede que hoje é o muro trincado. Uma programação, pouco divertida, que me fazia acordar chorando e gritando pela minha mãe e que me causava medo até durante o dia. Medo de quê? Não sei precisar. De fantasma, de ladrão, de barulho, de ficar sozinha, de escuro, de ir dormir, de sonhar, de adormecer em um quarto sem janelas, e por aí vai. Só sei que eu era medrosa e o medo, tenho certeza, era muito em consequência do mundo distorcido que via na parede daquele quarto sem janelas e que não me deixava enxergar a realidade além das visões que conhecia.

Mas, felizmente, a casa em forma de consoante foi derrubada e nos mudamos para outra, enquanto um nova habitação com corredores era erguida, sem interferências do português ou quaisquer outras línguas que não fossem a arquitetura ou engenharia. Durante esse período, ganhei um quarto com menos privacidade ainda, pois o dividia com toda família, mas pelo menos tinha o bônus de uma janela e de dormir na parte de cima do beliche. Evidente, ainda tive sonhos ruins e medos diurnos durante um período, mas aquele quarto acolhedor e a passagem do tempo com novas visões fizeram-me encarar a realidade com menos bloqueios. Quando a nova casa ficou pronta eu já tinha deixado a infância para trás, junto com meus pesadelos, era uma adolescente que ainda tinha medo de ladrão quando estava em casa sozinha. Porém, numa casa com corredores e três portas para escapar, caso necessário, decidi enfrentar os bandidos da minha mente armada de cabos de vassoura cada vez que ouvia um barulho diferente, foi assim que ganhei uma realidade com novas perspectivas.

O quarto onde eu acordei em um horário impróprio há alguns domingos atrás faz parte da minha vida já há alguns anos. Não sei por que madruguei naquele dia sem conseguir dormir novamente, ainda desconfio da britadeira, pois não tenho mais pesadelos e apesar de praticamente não me lembrar dos meus sonhos, acredito que não sejam ruins, a julgar pela minha disposição todas as manhãs. Também não fantasio mais ladrões ao ouvir qualquer barulho e durmo em casa sozinha sem qualquer receio, mas, mesmo hoje, falta-me coragem para muita coisa, inclusive, prefiro não dormir mais no andar de cima de beliches, mesmo sabendo que a vista é melhor do que a cama de baixo e, muitas vezes, consciente ou inconscientemente não enxergo certas paisagens, mesmo elas não sendo fantasmas.

Naquela manhã, cansada de ficar olhando uma parede que agora é apenas um muro impedindo a vista, resolvi abandonar as minhas cobertas. E enquanto espreguiçava, preparando o corpo e o espírito para abrir a porta, vislumbrei acordar um dia, em madrugues domingos e em todas as datas, com janelas com vistas além de horizontais térreas e sem grandes bloqueios.

Ah, quanto a fenda que vi no muro naquele dia, pensei que fosse algo grave que teria que ser consertado com urgência, mas percebi que era apenas uma marca da passagem do tempo, estigma natural em algo que se modificou e modificará ao longo dos anos, provavelmente, há outras que não pude visualizar, além daquela do quarto da minha infância e, o que é inevitável, muitas aparecerão. Enquanto estiver por aqui serão meus novos galhos.