As férias de Ramon

As férias aliviam pouco o espírito atormentado de Ramon. Sua mente obsessiva, preocupada demais com coisas por fazer (que, mesmo sem a obrigação cotidiana do trabalho, enchem sua agenda de domingo a domingo), não lhe dá trégua. É nas férias, por exemplo, que ele vai ao dentista, submetendo-se por livre e espontânea vontade ao que há de mais refinado em tortura física disponível no mercado: “Carla, pega para mim a lixa profilática”, diz o dentista, dirigindo-se à sua assistente, e Ramon antecipa em seu corpo a horrível sensação de ter uma lixa de pedreiro entre os dentes, arranhando, raspando, indo e voltando cem, duzentas vezes, até extrair o último vestígio de tártaro. “Se doer você me avisa”, ele diz, iniciando um outro procedimento; mas o pior não é a dor, é a espera da dor, a expectativa, que é terrível. “Acho que vou ter que te anestesiar”, e Ramon não sabe o que é pior: as agulhadas da anestesia, que parecem perfurar o núcleo do nervo – o centro mesmo da dor –, ou a dor normal que decorre de um procedimento realizado sem anestesia. E ainda tem o alto valor do investimento, que normalmente Ramon paga feliz, não só por ter consciência da importância de uma boa saúde bucal, mas também porque só paga no final, minutos antes de ir embora, para só voltar no ano seguinte.

Ele sai satisfeito do dentista, pronto para sua visita anual ao médico e, como consequência, sua bateria anual de exames. Urina e sangue, tudo bem. Mas fezes...

O homem ocidental normalmente não gosta de manusear fezes (nisso Ramon se iguala à maioria), e manusear suas próprias fezes, mesmo que com palitinho e plástico, é, para Ramon, não só nojento, mas aviltante: é a confirmação palpável, com cheiro, temperatura e consistência, de que ele e toda a humanidade não valem realmente nada: “do pó ao pó”, como dizia o Padre Vieira. Mas ele faz o que precisa ser feito, como qualquer um; depois enfrenta a fila para entregar os potinhos devidamente lacrados e embrulhados no laboratório, onde seus conteúdos serão analisados por profissionais que Ramon respeita ainda mais que dentistas e médicos: aqueles que manuseiam não uma ou duas amostras de fezes, mas dezenas, centenas, todos os dias, remexendo resíduos de vários formatos, consistências, cores e cheiros, procurando ovos de lombriga (ou a própria lombriga), sangue oculto e não sei mais o quê.

Depois é aguardar, sofrendo, o resultado dos exames. O sofrimento é em decorrência da preocupação obsessiva que Ramon tem com a sua saúde (ou a falta dela), o que chamamos de hipocondria. Ramon bate o olho no resultado de um exame e acha que sabe tudo: dá o diagnóstico e o prognóstico, às vezes imagina até os detalhes do tratamento. Mesmo sem o resultado oficial ele já tem um resultado pronto na cabeça. E sofre. Como sofre! Em 99% das vezes não é nada, e quando é alguma coisa, é bobagem. Mas Ramon continua sofrendo mesmo assim. Ele não aprende.

As férias de Ramon coincidem sempre com as férias dos filhos, o que por um lado é bom, pois ele pode ficar mais tempo com as crianças, brincar, ler e passear com elas. Mas por outro lado, chega uma hora que cansa, e Ramon precisa de um tempo só para ele, em silêncio, mergulhado numa paz de Buda, para poder lidar melhor com seus demônios internos, que são muitos e terríveis.

E ainda tem a casa monstro. Isso mesmo. A casa de Ramon tem vida própria e é um monstro programado para atormentá-lo, sobretudo nas férias. Ela sabe quando ele entra de férias, ela pressente a alegria que a perspectiva de um tempo livre lhe dá, e ataca, sem dó nem piedade. Ano passado, foi uma infiltração na porcaria de um telhado de policarbonato, que custou a Ramon, além de muito dinheiro, vários telefonemas à empresa enrolada que colocou o telhado e que simplesmente abomina pegar pequenos serviços. Esse ano, três novas infiltrações, dessa vez na sala: três goteiras insistentes, que continuavam pingando mesmo quando não estava chovendo (lembrando que, normalmente, as férias de Ramon coincidem com o período das chuvas).

Ramon tentou primeiro conversar com a casa, pedir a ela misericórdia, propor um acordo de cavalheiros, mas foi em vão. O problema era na laje, não no telhado de policarbonato, por isso não havia empresa para chamar. Chamar quem, então? Um pedreiro? Um bombeiro? Ramon resolveu primeiro subir no telhado para ver o que era. Descobriu uma telha solta e, sorrindo, disse para a casa: “Te peguei”. Ele mesmo colocou a telha no lugar e voltou, feliz e vitorioso, para o seio de sua família. Mas não era a telha, pois as goteiras continuaram. Ele então subiu na laje, por uma portinha na área de serviço, e descobriu uma enorme poça de água bem em cima do local das goteiras, só que, por mais que ele investigasse o lugar, não soube como ela tinha se formado.

Três dias se passaram, com as goteiras enchendo baldes e mais baldes de água na sala e Ramon subindo e descendo pela portinha do telhado sem solucionar aquele mistério. Foi só no quarto dia que ele descobriu que o problema era numa parte de metal do telhado, uma coisa que ele nem sabia que existia e que, no dia seguinte, conversando com um amigo, descobriu se chamar “calha”. É que Ramon estava procurando o problema no meio exato da poça, e a goteira que vinha da calha danificada estava no canto, e só pingava quando chovia. Enfim, Ramon teve que chamar um especialista em calhas, que lhe cobrou os dois olhos da cara para resolver o problema.

E, para terminar, não podemos nos esquecer que na casa monstro tem também a geladeira monstro (sempre em conluio com a casa, só estragando no dia seguinte à compra mensal de carne), o portão eletrônico monstro, a televisão monstro, o alarme monstro, a internet CTBC monstro... Pois é.

Falta uma semana para terminarem as férias de Ramon. Hoje eu me encontrei com ele na rua. Está um desastre, coitado. Os exames deram todos normais, mas ele está preocupado com a possibilidade de vir a se tornar diabético, pois sua glicose deu 88, muito próximo de 99, que é o máximo permitido. Eu disse a ele para ficar calmo e não se preocupar com isso. “Vai ler um livro, Ramon, ver um filme, tira essa semana só para você, esquece o mundo”. Eu ia dizer a ele para aumentar a dose do rivotril, mas não disse. É melhor não.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 18/01/2013
Reeditado em 19/01/2013
Código do texto: T4092421
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.