Destinos

O executivo:

Voltei sozinho do sítio naquela manhã de sábado porque eu precisava trabalhar num projeto muito importante para a empresa. O prazo era até terça-feira, mas, embora só faltassem duas ou três páginas para terminar, eu tinha que reler tudo, corrigir erros, formatar gráficos, enfim, deixar o texto impecável para o meu chefe, que queria impressionar os investidores estrangeiros. A empresa dependia de mim. E eu dela. Pois se meus filhos estudavam no melhor colégio da cidade, se eu tinha um apartamento de cobertura num bairro nobre, se o meu carro era um Honda novinho, se eu viajava para a Europa três vezes por ano e o meu salário era cinco vezes maior do que o do próprio prefeito da cidade era porque a empresa gostava muito do meu trabalho, ou melhor: achava-o imprescindível; e eu, logicamente, não poderia, de maneira nenhuma, comprometer isso tudo apresentando um projeto medíocre ao meu superior, que já estava com a viagem marcada para Londres, onde se encontraria com os acionistas majoritários da empresa. Eu não podia decepcioná-lo.

Por isso, naquela manhã de sábado, no sítio que eu tinha acabado de comprar em Conceição do Piraí, tomei um café reforçado, despedi-me de minha família e peguei a estrada em direção ao meu apartamento, que ficava a 20 quilômetros dali. Lá eu tinha montado um home office de primeira linha, equipado com tudo que um escritório destinado a executivos do meu nível deveria ter. Naquela sala eu me conectava com o mundo, tomava decisões e elaborava projetos importantíssimos; era como se todos os continentes do planeta estivessem ao alcance das minhas mãos. A sensação de poder era maravilhosa.

O professor:

Terminei minha aula e peguei a estrada em direção a Conceição do Piraí, onde minha família se encontrava reunida para o almoço de aniversário da minha esposa, na casa dos pais dela. Eu só tive os dois primeiros horários no pré-vestibular, onde eu lecionava Biologia, mas preferi não passar em casa, pois já sentia falta da minha filha e estava louco para abraçar e beijar minha mulher, que completava trinta e dois anos naquele sábado.

A manhã estava linda, ensolarada, quase sem nuvens, embora a meteorologia tivesse anunciado chuva para o início da tarde.

Entrei no carro feliz da vida, mesmo sabendo que no dia seguinte eu teria que corrigir dois pacotes de provas do colégio particular e mais três do estadual, pois terça-feira era dia de entrega de notas nas duas escolas e os diários de classe tinham que estar impecáveis. Eu não me importava. “Amanhã é outro dia”, pensei. “O que importa é hoje: daqui a pouco eu vou almoçar com a minha família e, à noite, eu e minha mulher vamos sair para um jantar romântico”. Lembro-me de ter até sorrido e, enquanto enfiava a chave na ignição, pensado em voz alta: “Vida de professor é assim mesmo. Você sabia disso quando decidiu largar o curso de Medicina e prestar vestibular para Ciências Biológicas decidido a lecionar. Ou não sabia?”.

Assim que liguei o carro e parti, despedindo-me de alguns alunos que saíam do prédio à minha direita, concluí que, também como consequência dessa minha opção profissional, eu teria que aguentar aquele barulho esquisito no motor do meu carro até o 13º salário entrar.

Fui em direção ao trevo e em menos de cinco minutos peguei a estrada.

O dono do sítio:

Quem causou a confusão toda foi aquele moleque metido a apicultor, a quem, a pedido do seu pai (que era meu amigo), eu autorizei abrir uma velha caixa de abelhas abandonada num descampado do meu sítio, próximo à estrada. Para mim já nem tinha mais abelha lá, então eu deixei que ele abrisse, sem me preocupar. Nem fumegador, para acalmar as bichinhas, ele levou. Foi só com máscara, luvas e botas, mais nada, nem macacão.

Eu fiquei no curral alimentando os cavalos e as vacas e só fui me dar conta do que tinha acontecido quando uma das éguas levou a primeira ferroada. Ela deu um pulo e começou a correr pelo piquete. Eu olhei para o descampado e vi que um enorme enxame de abelhas se aproximava. O desgraçado do moleque veio correndo, gritando, com a camisa e as calças cheias de abelhas, que ele matava com as duas mãos, desesperado.

Antes de sentir a primeira das centenas de ferroadas que eu levaria no corpo todo, eu abri as porteiras do curral para soltar os animais que, se ficassem ali, morreriam na certa. A bicharada saiu pulando, correndo, e eu corri também, sentindo já as dores das pregadas que eu levava no pescoço, nos braços e nas mãos. Vi que o Imperador, meu cavalo preferido, galopava em direção à estrada. Fiquei preocupado. Mas o que fazer?

O moleque entrou na casa e fechou todas as portas e janelas; eu, preocupado com os animais, fui procurar umas palhas velhas no paiol para fazer um fogo, o que, eu pensava, assustaria as abelhas e as faria voltar para a caixa. Não me lembro de ter conseguido fazer o fogo... Não me lembro de mais nada.

O executivo:

Uma promoção. Era isso que eu queria. Aquele projeto seria a porta de entrada para mim à Gerência Geral da empresa, com certeza, e com esse novo cargo eu seria invejado por todos os outros executivos, principalmente pelo Jorginho, aquele babaca metido a besta. Ele ia ver só quando anunciassem a promoção e eu me tornasse chefe dele. Queria ver a cara do infeliz... Aquele fracassado... 45 anos nas costas, subalterno de um gerente de 35...

O professor:

Eu guiava com calma, sereno, olhando a natureza ao meu redor, mas ao mesmo tempo atento à estrada. Como sempre, o cenário era muito bonito: pastos verdes, currais, granjas de frango, lagoas com marrecos e patos nadando. Sábado era um dia especial, ainda mais aquele, quando a família toda me aguardava e teríamos no almoço um franguinho cozido com quiabo, angu, molho de ovo bem apimentado, arroz e tutu de feijão. Eu não precisava de mais nada.

O executivo:

Se não me engano, foi quando eu pensava na cara que faria o desgraçado do Jorginho que meu carro foi cercado por um monte de abelhas. Umas cinco ou seis entraram por uma abertura no vidro. Uma delas me ferroou no queixo, uma outra tentava entrar por baixo da minha camisa, quando eu me descuidei do volante e, ao invés de frear, acelerei mais, confuso e com medo das ferroadas. Foi nesse exato momento que um cavalo preto atravessou na minha frente. Fechei os olhos e gritei. Não vi o que aconteceu.

O professor:

“O que é aquilo?”, perguntei a mim mesmo quando vi um carro prateado enorme ziguezagueando pela estrada, vindo em minha direção, em alta velocidade. A pergunta mal acabara de ser formulada na minha cabeça quando a coisa aconteceu. Um cavalo entrou galopando no meio da pista, o carro prateado perdeu o controle, eu tentei frear, mas o maluco parece que não me viu e foi com tudo pra cima de mim. Não me lembro de ter conseguido desviar.

O repórter:

Meus caros ouvintes, nesta ensolarada manhã de sábado, estou aqui, com a nossa equipe de reportagem, no cenário de uma triste tragédia. Dois homens tiveram morte instantânea quando seus carros se chocaram de frente, próximo a Conceição do Piraí. Um deles dirigia um Honda prateado, ano 2010, e o outro, um Uno preto 96... O quê? Tem certeza? Estão me informando aqui que o dono do sítio ao lado, na beira da estrada, também morreu... O quê? Picado por abelhas?... Realmente, a gente vê muitas abelhas voando por aqui... Parece que estão vindo de lá... Olha lá, Raul... Ai... Me ajuda aqui... Segura isso pra mim... Ai... Vamos pro carro... Rápido... Ai, ai, ai...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 03/02/2013
Código do texto: T4120820
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.