Volúpia literária

Sete horas e trinta minutos da manhã. Terminal lotado. Trabalhadores movimentando-se. Gente que vem, gente que vai. Mulheres e homens que se misturam, cruzam-se, porém seguem o seu destino. Salto alto e sandálias juntam-se. Tênis, sapatos e chinelos, agregam-se às bermudas e calças sociais. O gel encobre ao cabelo mal penteado e o bafo bucal começa o diálogo.

Procuro sempre sentar na mesma poltrona, altero aos lados, algumas vezes, sigo procurando meu canto ao fundo, não gosto de ir junto ao cobrador com medo dos assaltos. Conheço as pessoas que entram naquela viagem. Não tenho amizades, porém os rostos são conhecidos. Algumas caras mais alegres, outras mais tristes. Pálidas, desbotadas, outras elevadas na maquilagem. Definitivamente parecem que não se destinam ao trabalho ou será que trabalham de maneira não regulamentada? Pois, é... Mas cada um faz o que deseja com o corpo que Deus lhe deu!

Passei a roleta, o meu banco estava livre, agora é só sentar, viajar tranqüilo caso aqueles guris se atrasem. Quando eles estão naquele ônibus a algazarra e a música alta dão lugar a viagem pacífica. Do meu lado senta-se uma senhora, já tinha pego aquele ônibus outras vezes, porém andava sumida. Pensei até que fora despedida sem ao menos saber se ela trabalhava. No entanto, naquele horário e portando uma bolsa, ela trabalhava sim. Era labor na certa! Eu pensei por um instante... Peguei o meu livro, ganhado na noite do meu último aniversário (não direi a minha idade por uma questão de preservação da minha identidade, escancarada nas redes sociais), “Pensamentos que penso quando não estou pensando” do grande autor Rubem Alves e segui lendo como faço cotidianamente.

Ao meu lado percebi que ela olhara, titubeou e logo saltou da sua mala (ou seria uma bolsa feminina?) um compêndio, desses livros grossos, volumosos, que assustam qualquer principiante na leitura. Parei a minha leitura e esperei a capa se voltar a mim. Ela virava as páginas e a frente do livro não aparecia. Assumi a responsabilidade pela pausa na minha leitura em busca do título daquela obra que a senhora lia. Insisti. Achei que ela fosse perceber a minha curiosidade e mostraria a esse viciado em livros qual a obra que ela devorava. Não deu bola, continuou a sua leitura, não percebia minha presença ao seu lado. Eram páginas viradas, linhas cruzadas por um olhar mágico, fascinado, não se importando com a bagunça que aqueles guris proferiam.

Eu era um espectador, admirava o livro que aquela senhora lia sem ao menos saber o que caíra em suas mãos. Deixei o meu Rubem Alves de lado para apreciar aquela leitura. Parece que eu lia com ela sem ver o que ela lia. Desanimar jamais! Passava às páginas como aquela que queria chegar ao final do livro. Leitura gostosa, enquanto isso o meu livro estava fechado. Coisa que nunca fiz. Era desprezo. Pura curiosidade. Prometi que terminaria a leitura mais tarde, mas antes tinha um só objetivo: saber o que aquela senhora apreciava literariamente.

Passando por uma lombada o veículo deu aquele salto, ela se deslocou de seu assento, tentou segurar no braço do seu banco, mas teve que se apoiar no meu. Pediu desculpas com a cara envergonhada, pálida como Ismália... Aproveitei aquele momento de falta de reflexo e de ausência de concentração para espiar o título daquela obra que julgara maravilhosa. Era “50 tons de cinza”. Daí a voracidade feminina. Parecia satisfazer aos seus desejos, encontrar-se com linguagens dantes nunca imaginadas. A volúpia apreciada.

Fui um espectador de um leitor, aquela que lia com vontade, de maneira desejada. Parece que “50 tons de cinza” é mesmo um livro inspirador. Decidi que o comprarei a minha esposa, quem sabe leio depois dela, caso ela permita...

Sergio Santanna
Enviado por Sergio Santanna em 05/02/2013
Código do texto: T4125135
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