Ramon em choque

Ramon tem o péssimo hábito de só se comparar com pessoas que ele considera “normais”, o que o faz se sentir uma verdadeira aberração da natureza. Às vezes ele me liga no meio da noite (cochichando ao telefone para não acordar a mulher e os filhos), desesperado, com a mesma ladainha de sempre: “Eu sou um desajustado, um descontrolado, um doido de pedra. Não sirvo para viver em sociedade, não consigo me enquadrar de jeito nenhum. As pessoas me odeiam, têm medo de mim... Olha, não dá mais... Simplesmente não dá mais. Acabou”. E eu respondo: “Acabou nada, Ramon. A vida é assim mesmo. Não existe ninguém normal. Você não é louco. Nós gostamos de você do jeito que você é. Coloca essa sua cabeça no lugar e vai dormir”. Ele chora, soluça, gagueja, tenta me manter na linha dizendo que vai se matar com um tiro no céu da boca – e eu fico ouvindo aquilo, cheio de compaixão, imaginando ele agachado no canto da sala, tremendo, como se um assassino sanguinário estivesse vasculhando a casa à sua procura para torturá-lo e depois matá-lo. (Infelizmente esse assassino existe. É o próprio Ramon, caçando a si mesmo na escuridão – uma escuridão que é só dele).

No dia seguinte a uma dessas crises, resolvi gravar um DVD para ele. Deu muito trabalho, mas em menos de um mês ficou pronto: uma coletânea dos casos mais bizarros apresentados em alguns programas que passam na TV por assinatura, que eu costumava assistir quando perdia o sono, e que, para mim, ajudariam Ramon a se sentir menos desajustado: Acumuladores, Desordem mental, Louca compulsão, Minha estranha obsessão, Enigmas da Medicina, Troca de esposas, entre outros. Entreguei para ele o DVD e disse: “Veja isto, Ramon. Aqui você vai encontrar pessoas muito mais estranhas e desajustadas do que você” (e dei a ele alguns exemplos: o do rapaz que se sentia perseguido por monstros horríveis dia e noite, o da mulher que só conseguia comer batata frita, o do homem que tinha a casa toda tomada por objetos inúteis e muita sujeira, o do rapaz que tinha um tumor de cinco quilos pendurado no rosto, e o do garoto que mais parecia um lobisomem). “Só que, como você vai ver”, continuei, “essas pessoas seguem vivendo suas vidas, buscam ajuda, contam com o carinho da família e dos amigos... Diferente de você, Ramon, que só sabe reclamar e se punir, tornando a sua vida e a das pessoas que gostam de você um verdadeiro inferno”. Ele aceitou o presente de cabeça baixa, meio desconfiado, e foi embora.

Viajei a serviço da empresa e, quando voltei, duas semanas depois, fiquei sabendo que Ramon se encontrava internado numa clínica psiquiátrica. Liguei para a sua esposa e ela me disse que, na semana anterior, ele estava assistindo a um DVD qualquer na sala, quando ela passou e o achou estranho, meio distante. Ela lhe perguntou se estava tudo bem e ele disse que sim. Mais tarde, quando ela passou de novo, ele se encontrava em estado de choque, paralisado, os olhos arregalados, a boca aberta babando horrores na gola da camisa. Parecia uma estátua de cera: pálido, frio. Ela o sacudiu com força, desesperada, gritou, molhou seu rosto com água gelada, mas nada disso o acordava. Chamou os bombeiros, que tiveram que carregá-lo como se carrega um boneco de madeira ou um robô. Seu coração batia lentamente, ele respirava, mas era como se fosse um objeto inanimado, “uma coisa muito esquisita”, ela disse.

“Meu Deus, o que foi que eu fiz?”, pensei comigo mesmo, ao desligar o telefone. “Só pode ter sido...”.

No dia seguinte fui à clínica psiquiátrica. Não pude ver Ramon, que ainda estava em estado de choque, mas fui informado pelo seu médico que alguma coisa deve ter desencadeado uma reação em cadeia no seu cérebro debilitado, aumentando em níveis altíssimos seu transtorno obsessivo compulsivo, sua ansiedade e depressão, tudo ao mesmo tempo, levando ao choque e à paralisia. “Que coisa...”, disse eu, tremendo todo por dentro, e pensei: “Conto ou não conto?”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 09/02/2013
Código do texto: T4131222
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.