COROINHA DE LENÇOL

O texto a seguir foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

COROINHA DE LENÇOL

Convém esclarecer desde já que não se trata, aqui, de lençol de cama não, e sim de um lugarejo dos arredores de Rio Negrinho que se chamava, e decerto ainda se chama, Lençol.

Dois ou três dias depois de nossa chegada ao seminário, o Padre Reitor chegou ao refeitório e, antes de dar o sinal pra levantarmos pra oração de agradecimento, ouvi-o perguntar pra uma turma de veteranos mais próximas dele:

— Quem sabe ajudar a missa, pra acompanhar o Padre Tito a Lençol amanhã?

— Ah, eu não sei — negou-se um.

— Eu também não sei — repetiu outro.

Eu estranhei a pergunta, achando bastante esquisita e sem justificativa a existência de seminaristas com um ano de estudo e ainda sem saber ajudar a missa. No meu modo de pensar, estava havendo um erro muito grave na formação dos futuros padres.

Naquele tempo as missas eram rezadas em latim, e não era nada fácil ser coroinha. Era preciso decorar todas as orações naquela língua estranha e sem entender uma vírgula do que se dizia. Mesmo assim, eu achava que era realmente imperdoável um seminarista não sê-lo. Guardei silêncio no entanto e esperei. Depois de muitas negativas e vendo que ninguém se apresentava, eu levantei o braço.

— Eu sei, Seu Padre — ofereci-me.

Pra desprazer dos veteranos, que queriam ser os tais, que arrotavam sabedoria diante dos novatos, eu fui aceito e acompanhei pela primeira vez o Padre Tito, que dali em diante semanalmente me convidava pra ir com ele, pois era ele quem substituía o vigário naquela capela.

De manhã, quando eu me apresentei para acompanhá-lo, ele olhou-me de alto a baixo.

— És tu, Corrêa? Xi, rapaz, tu és muito grande! As roupas de coroinha de lá não vão servir em ti — explicou. — Mas então espere aí um instantinho — falou e voltou a seu quarto, onde não se demorou.

Fomos num jipe, que veio especialmente de lá pra buscar-nos. No trajeto eu pude apreciar a paisagem de lá e estabelecer comparações com o meu já saudoso sertão do Bom Jesus. Em vez dos morros altos, eu via apenas as ondulações suaves do terreno, coberto quase todo por uma vegetação estranha, por baixo do extenso pinheiral, tão raro lá no Sul.

Padre Tito e eu já nos conhecíamos há mais tempo, pois ele tinha estado algumas vezes em Bom Jesus substituindo o vigário, e eu fui seu coroinha. Foi a ele, inclusive, que meus pais me apresentaram como candidato ao seminário e com ele acertaram os detalhes da partida. Não me foi difícil, portanto, entabularmos conversa pela estrada como velhos amigos, até porque, embora eu fosse quase um menino, tínhamos praticamente a mesma altura.

— Que planta é essa, Padre Tito? Parece vassoura, mas não é — perguntei interessado.

— Chama-se bracatinga. É o que mais dá por aqui além dos pinheiros, rapaz.

— Bra-ca-tin-ga? Que nome esquisito! Catinga eu sei o que é: mau cheiro, fedor. Mas bracatinga eu não conhecia não — retruquei meio sorrindo.

— Catinga tem outro significado que você esqueceu.

— Tem, é? Eu não conheço.

— Catinga ou caatinga é a vegetação do Nordeste brasileiro — ensinou-me.

— É... O lugar aqui é bem diferente de lá — considerei com acento de saudade e abafando um suspiro.

Ele, o bom padre, percebeu e procurou incutir-me novos pensamentos, olhando-me firme nos olhos.

— Mas tanto aqui quanto lá, tudo é Brasil, tudo foi criado por Deus. O mesmo ar que se respira aqui se respira lá, as pessoas daqui têm as mesmas aspirações e os mesmos problemas das de lá.

Ao chegarmos a Lençol, ele tirou da mochila uma de suas batinas e uma sobrepeliz e entregou-me. Foi para buscá-las que ele havia voltado ao sairmos do seminário.

— Já que as roupas de coroinha não te servem, veste isto.

Eu cheguei a hesitar, mas não disse nada. Enquanto me vestia, imaginei-me enfiado naquela batina. Pena que não tinha um espelho para eu me contemplar naqueles trajes.

— Vê só: como te serviu direitinho! Estás até parecendo um noviço — exclamou e comentou o bom padre.

Lençol era uma comunidade cem por cento alemã. As orações do povo, puxadas pelo capelão do lugar simultaneamente às da missa, eram todas feitas em alemão. Até a homilia e os avisos finais foram em alemão. Eu me senti um estrangeiro. Não entendi patavina. A única palavra desta língua que eu sabia era “iá”. Mesmo que me chamassem de burro, ignorante, eu afirmaria com o meu iá.

E foi o que quase aconteceu depois da missa. O capelão aproximou-se, puxando conversa, e eu ia responder como sabia, mas o padre, vendo meu embaraço, falou sei lá o quê pro fulano que olhou-me com uma pitadinha de desprezo e deixou-me em paz.

Mas o pior estava por vir. Semanalmente eu acompanhava o Padre Tito a Lençol. Passei a coroinha oficial e único do lugar, embora cada vez recebesse do capelão e das demais pessoas aquele olhar de pouco caso. Jamais esquecerei minhas idas a Lençol. Mas do que eu mais me lembro e que ainda hoje me faz rir é do dia de Corpus Christi. Antes da missa houve procissão. Quando eu pensava que iria ficar sob o pálio, ao lado do padre, o safado mandou-me lá pra frente, pro meio da criançada a puxar rezas e cantos.

Fiquei meio sem-graça, mas fui. Pra quê! Puxei meu terço do bolso, agitei-o no ar, como a convidar as crianças a rezarem comigo, e entabulei um creio-em-deus-padre. A fedelhada toda prontamente continuou a reza, mas em alemão. E eu continuei ali no meio deles com cara de bobo. Mas eu não me dei por vencido não, e o terço continuou assim, bilingue, rezado em português e alemão.

Durante o primeiro mistério, eu pesquisei no meu repertório ou canto em honra a Jesus Sacramentado, escolhi o que julgava mais conhecido e no final das dez ave-marias entoei-o com todo vigor e confiança. A pirralhada, logo que reconheceu a melodia, acompanhou-me, mas da mesma forma – em alemão. E eu tive que calar a boca. Por sorte, a procissão foi curta, e eu saí do sufoco.

Na sacristia, depois das cerimônias, eu me desabafei ao padre.

— O senhor me botou numa sinuca durante a procissão, hein, Padre Tito!

— O quê? Qual sinuca?

— Mandou-me rezar com a molecada. Passei uma vergonha danada. — e expliquei o sucedido.

— Ah, rapaz, me perdoe. Eu esqueci que tu não falas alemão.

E rimos ambos a valer. Eu dos meus apuros, e ele imaginando a cena.