COROINHA-MESTRE

O texto a seguir foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

COROINHA-MESTRE

Durante todo aquele dia de minha primeira ida a Lençol eu fiquei cismando sobre a recusa que eu havia recebido de um seminarista ao convidá-lo para ajudar a missa comigo lá no meu Bom Jesus. O tal seminarista tinha sido meu colega na escola local e estava gozando suas primeiras férias em casa. “Ah, o safado não aceitou o convite porque não sabia! Quando que eu ia imaginar?... Que vergonha!”, eu pensava.

Inconformado, à noite daquele mesmo dia eu fui ao quarto do Padre Reitor.

— O que deseja, meu bom advogado? — brincou ele, lembrando-se da cama quebrada.

Ao tom cordial da recepção, eu não tive medo de expor meu ponto-de-vista. Contei o caso do seminarista conterrâneo que não tinha aceitado meu convite e concluí sem papas na língua:

— Eu acho vergonhoso mesmo que um seminarista não saiba ajudar a missa. Eu pensava que era a primeira coisa a ser ensinada aqui.

Enquanto eu falava, o Padre me ouvia com atenção e balançava a cabeça, demonstrando até certa vergonha.

— Olha, seu Corrêa, amanhã mesmo você vai começar este trabalho.

— Que trabalho? — perguntei sem entender a incumbência.

— De ensinar todos a ajudar a missa. E escute bem: aquele que até a metade do ano não tiver aprendido, vai ser mandado embora.

No dia seguinte a bomba estourou bem cedo no meio da turma reunida no refeitório, e todos tiveram que aceitar calados a ameaça de expulsão.

Além da capela maior, com dois altares laterais, havia outra menorzinha, a fim de que vários padres pudessem celebrar simultaneamente. Foi ali que eu, dias depois, comecei meu novo ofício de coroinha-mestre, fazendo as vezes de padre, pra que os outros aprendessem. Em vez de cálice eu usava um castiçal de madeira. Por patena eu peguei um pires na cozinha. Pra servir de hóstia, eu recortei uma rodela de papelão, e as galhetas eram sem água nem vinho. À hora do “lavabo”, os aprendizes me lavavam as mãos a seco, só no faz-de-conta.

Naqueles tempos o padre celebrava de costas pro povo, e na hora da consagração os coroinhas se postavam atrás dele, levantando-lhe a barra da casula no erguer a hóstia e o cálice. Pra treinar isso, o Padre Reitor me permitiu usar uma casula preta e fora de uso. De tão velha, estava toda puída pelas bainhas e tinha fortes indícios de que as traças andaram saboreando-a. Tive até séria suspeita de que fora trazida de Portugal por Dom Henrique de Coimbra.

Um dia, quando estávamos em pleno ensaio, Padre Tito abriu a porta e, vendo-me assim fantasiado com aquela casula preta, gracejou:

— É missa de defunto?

Eu tinha a mania besta de trocar as sílabas das palavras, formando outras quase sempre sem sentido e respondi prontamente:

— Não. É de fedunto.

Percebendo a dificuldade de muitos no decorar as orações, me veio a ideia de sugerir ao Padre Reitor que os celebrantes rezassem em voz alta e que todos respondessem com os coroinhas.

A sugestão foi acatada e posta em prática com ótimo resultado. Em pouco tempo a meninada chegava a disputar, até com empurrões e trocas de indelicadezas à porta da sacristia, a vez de ajudar as missas, e no fim do semestre a ameaça de expulsão não precisou ser aplicada.