A morte da ingenuidade

Quando ela se aproxima, ele segue um ritual: escolhe um canto com pouca luz (talvez para se acostumar com a escuridão que irá encontrar) e esquece as “fanfarras” da vida. As “baladas” não mais importam, os amigos continuam em suas travessuras enquanto seu olhar começa a ficar perdido no nada (ou será no tudo?). Quando dele me aproximo, ainda surge um lampejo no seu olhar... Talvez, como uma despedida e dando-me a certeza de que ele voltará!

Enquanto me despeço, nas periferias cantam um canto de morte, proliferado pelas teias de consumo da mídia no nosso país. Como meu amigo, predestinado a morrer no seu tempo, muitas mentes inocentes estão sendo sacrificadas pelos interesses midiáticos com suas apologias de músicas de péssimas qualidades... Toda criança da periferia se agacha até o chão; ingenuamente ou não, elas conhecem os movimentos do falo para procriação... Agora, “putariação”!

Meu amigo está morrendo, curta vida. Como curta será também a inocência na periferia. Na mídia, homens e mulheres de lei (que não pisam na lama dos guetos) discursam para os holofotes midiáticos: “...Isto é uma imoralidade com o dinheiro público; dinheiro público tem que ser aplicado na saúde e educação de nossas crianças...” Os holofotes se apagam, promotores somem, políticos somem... A morte ressurge em cada casebre dentro das telas de TV.

Um último olhar para meu amigo no seu cantinho de morte escolhido. Relembro nossa pouca convivência: por que fui tão curta? Talvez para me ensinar que o amor também é curto, mas vale enquanto dura. Estaríamos todos – homens, animais, sentimentos... – predestinados ao gozo apenas do espaço da nossa sobrevivência (sobreviver para morrer) ou teremos que admitir que a eternidade anseia por todos com sua legião de anjos tocando liras: sem música de boa qualidade, sem poesias, sem bons livros...? Ou aqui é que reina a monotonia da ausência de Deuses?

Agora que ela está mais perto e eu nada posso fazer, aproveito para dizer-lhe que ele foi um amigo fiel: acordava-me cedo, preocupado com minha preguiça, amparava-me nas minhas preocupações e ao dormir ao lado da minha rede ensinava-me que o sono é o nosso momento de ligação com o etéreo; todos iguais segundo as regras dos animais!

Zeca não tinha “pedigree”, nascido na periferia (filho de família vira-lata) viveu pouco e brincou muito até seus últimos dias (55); mesmo vacinado e tratado. Como meu amigo, também é assim o destino de muitas crianças inocentes diante do genocídio da mídia promovendo a morte de suas ingenuidades.

Kal Angelus
Enviado por Kal Angelus em 11/02/2013
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