Um ato de coragem

Ser pego de surpresa é a confirmação de que nosso tempo – nossa passagem, como querem alguns – pode ser planejado como quisermos, mas sempre haverá acontecimentos bem diferentes do que esperávamos. Assim foi o anúncio da renúncia de Bento XVI, pegando quase todos “com a batina na mão” e provocando uma reflexão não planejada no seio da igreja católica, com reflexos nas outras denominações religiosas, pois dizer que as grandes decisões da cúria romana não afetam as outras religiões é, no mínimo, ingenuidade.

No pronunciamento de sua última missa, prevaleceu o intelectual crítico, o homem que abomina hipocrisias e que ainda crê numa igreja unida, apesar da “divisão do corpo eclesiástico”, de que “o rosto da Igreja seja, por vezes, desfigurado”. Está amargurado, e não procurou escondê-lo.

Se houve alguém que surpreendeu no seio católico, foi esse homem. Uma das inteligências mais brilhantes do catolicismo moderno, nunca abandonou seu posicionamento extremamente tradicionalista. Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – herdeira da Santa Inquisição -, por exemplo, faltou-lhe caridade e empatia para com a teologia da libertação e outras manifestações mais em consonância com a modernidade. No início de seu pontificado, era claro o desconforto e a falta de tato, mas, para surpresa de muitos, superou-se e conseguiu conquistar multidões. Da mesma forma, teve a suprema humildade de pedir perdão aos judeus pelos séculos de condenação sem culpa que o cristianismo havia lhes imputado. Questões tratadas aos sussurros, como os casos de pedofilia na igreja, tiveram tratamento de choque e de frente.

Não que, no fundo, não continuasse a ser o cardeal Ratzinger, que sempre critiquei, mas deu um belo exemplo de superação. O anúncio da renúncia foi um ato de coragem: por mais que haja orientação médica, que esteja cansado, que tenha a consciência de que o governo de uma instituição tão grande e tão plural exige mais fôlego do que tem, abrir mão desse poder é um exemplo muito digno.

Tomara que, em seu retiro, continue escrevendo. Quem sabe ainda tenha forças para debater filosofia e, quem sabe, a fumaça branca no mês de março anuncie a eleição de um papa com a inteligência de Bento XVI, o carisma de João Paulo II e a bondade de João Paulo I e João XXIII. O mundo está carente de líderes assim.