O último suspiro

É sabido que o tempo se comporta de um modo surpreendente, por vezes até capcioso, fazendo com que as horas tediosas se estendam longamente, mas acelerando os breves e deliciosos momentos em contato com a pessoa amada.

Também se sabe que o tempo vai encurtando cada vez mais, de modo que os anos agora transcorrem rapidamente, em contraste

com os longos, quase infinitos, anos da infância.

Mas os caprichos do tempo não se resumem a esses, e se manifestam ainda mais intensamente no derradeiro instante, no suspiro final. Nesse momento, no último em que ainda contemplamos esse nosso mundo, o tempo se expande tremendamente, abarcando toda a nossa existência.

Durante esse longo instante, tornamos a renascer, recapitulando cada um dos principais momentos de nossas vidas. Revivemos os ingênuos, mas penosos desafios da infância, as confusões da juventude todos os nossos temores. Rememoramos, intensa, mas fugazmente os nossos amores, nossas paixões; revivemos todos os momentos marcantes em nossa existência, já então, reconhecidamente, muito breve.

Nesse instante desvelam-se as mentiras, mesmo, ou especialmente aquelas que criamos para nós mesmos, e somos inundados pela luz da sensatez, discernindo com clareza os mistérios criados por nós mesmos, por nossa própria incompetência.

Tomados pela perplexidade, recapitulamos toda a nossa existência, como se assistíssemos a um filme, uma tragicomédia tocante, intensa e toda ela pontilhada de erros.

O espetáculo nos revela, uma vez mais, o quanto os nossos destinos nos são alheios, o quanto os eventos se sucedem independentes de nossas razões, de nossos esforços, transformando-nos em joguetes de uma trama imensamente mais ampla da qual só podemos participar marginalmente, como coadjuvantes irrelevantes.

Para os maus, a tragicomédia será cruel, magnificando cada instante de crueldade e dor, realçando os sucessivos atos de vileza que compuseram uma existência sórdida. Vislumbrarão o inferno enquanto estendem os infindáveis momentos de tortura, impostos a outrem e a si mesmos.

Os mais benévolos e cônscios terão, talvez, a oportunidade e o discernimento de se ater novamente a algum instante escolhido, a um desses desgarrados da perfeição; de fruir uma vez mais um momento de sublime enlevo.

* * *

Suspensas as dores, no derradeiro instante, superadas todas as veleidades do presente, nesse último momento estendido, ampliado, esticado sobre toda uma existência a se findar, desvelam-se as vaidades, caem os véus da mentira; descortina-se então um imenso cenário.

O céu cinzento, pesado, e quase sólido ilumina intensamente a pequena varanda, enquanto Vanessa, peladinha em meus braços, cantarola alegremente.

A belíssima vista do mar e do farol em frente à janela se apequenam ante a beleza do céu plúmbeo composto por nuvens geométricas, estranhamente talhadas no céu surpreendentemente luminoso daquele final de tarde.

O vento agita as árvores, revolve nuvens no céu, e Vanessa cantarola em meus braços balançando o corpo de um lado para o outro alegremente.

Contemplo o rosto alegre da menina, seus olhos, aspiro o vento que vem do mar, envolvo o corpo da jovem carinhosamente, admirado com os matizes do céu estranhamente iluminado. Ouço a voz da moreninha a cantarolar no mesmo ritmo em que a embalo em meus braços, em meu peito, suspenso assim no tempo até um derradeiro instante, até reviver o mesmo doce momento, estendido longamente pela eternidade.

Quero Vanessa cantarolando em meus braços até a superação dos tempos.