O pesadelo de Ramon

Ontem à tarde eu estive conversando com o Ramon e ele me contou um pesadelo que o vem atormentando há pelo menos dois meses. Enquanto falava, suas mãos tremiam e seus olhos giravam descontrolados, como que perdidos nas órbitas. Ele realmente estava muito perturbado e, a julgar pelo seu relato, com toda a razão.

Segundo Ramon, o pesadelo não durava mais do que uma hora, pois começava tão logo ele dormia, às duas da madrugada, e terminava por volta das três, quando acordava em pânico, suando frio e com a boca completamente seca de pavor. No entanto, seu enredo era tão complexo e longo, que parecia mais uma epopéia às avessas (sem nada de heróico ou glorioso), ou uma bela tragédia grega, daquelas bem carregadas de angústia e desespero.

O pesadelo era mais ou menos assim:

Ramon cuidava da vida como tinha que ser: trabalhava, levava os filhos na escola, comia, dormia, transava, ajudava a esposa com as compras, lia livros, assistia a filmes, etc. Só que, de repente, várias situações inesperadas começaram a acontecer, a maioria ligada à casa onde ele vivia com a família: a geladeira estragava, pombos entupiam as calhas com ninhos e fezes, goteiras começavam a pingar no quarto e na sala, a internet pifava, a antena da TV não captava mais o sinal do satélite, o alarme disparava sem mais nem menos, o telefone parava de funcionar, a pia da cozinha e as duas privadas entupiam, etc.

Se cada uma dessas situações acontecesse isoladamente e todas fossem solucionadas, eu diria que, até aí, tudo bem. Só que, no pesadelo de Ramon, tudo acontecia ao mesmo tempo, e nada era solucionado. Ele chamava eletricistas, pedreiros, técnicos em informática, bombeiros, homens da geladeira, do fogão, da máquina de lavar, da calha, do alarme, e nada era resolvido. Sempre faltava uma peça que não era mais fabricada, um dispositivo que só era vendido na Coréia do Norte, na Malásia, na Rússia ou no Alaska; ou a situação exigia a presença de um perito, um especialista naquele tipo específico de problema (uma pessoa que simplesmente não existia). Eles diziam: “Falta nesse cano um bico de bronze que não é vendido no Brasil em lugar nenhum, e eu não sei onde você vai achar”. “Os pombos que infestam o seu telhado são de uma raça japonesa imortal, primos distantes dos pokémons; não há o que fazer”. “Essa goteira é um mistério para mim, ela simplesmente não tem razão de ser; não há nada lá em cima que a explique”. “Parece que tem um objeto voador não identificado bloqueando o sinal da sua TV. Não é um balão... Veja... Parece uma nave. Ela não sai dali. Já vi isso acontecer... E, olha... não tem jeito”.

E novos problemas surgiam todos os dias, como pipocas arrebentando, alguns de arrepiar os cabelos. Como no dia em que um ninho de pombo caiu na sacada do quarto de Ramon e os dois filhotinhos recém-nascidos começaram a circular pela casa, arrastando seus corpinhos depenados pelos corredores, quartos e banheiros, dias e noites seguidos; porque, por mais que Ramon tentasse se livrar deles, jogando-os no lixo, na privada entupida ou esmagando-os com a sola do sapato, eles voltavam sempre, ressurgindo dos mortos, como naquele filme "Cemitério Maldito".

E enquanto tudo isso acontecia, além de cuidar da casa monstro e de sua família, Ramon tinha que ir a dezenas de médicos e centros de diagnóstico, pois seus exames sempre davam alguma coisa alterada. Ao ler um resultado, o médico pedia mais exames, que davam resultados ainda mais alarmantes, levando a mais e mais exames – Ramon teve praticamente todas as células do seu corpo investigadas: ribossomos, mitocôndrias, centríolos e retículos endoplasmáticos analisados nos seus mínimos detalhes; só para, no final, os médicos não chegarem a nenhuma conclusão e Ramon sair de seus consultórios cheio de sintomas e sem a menor esperança de cura.

Terrível, não?

Pois era esse o pesadelo de Ramon.

Será que Freud explica?

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 22/02/2013
Código do texto: T4154756
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