A Globo e coisas do meu passado

É incrível. Os homens estão sempre elegendo modismos para seguir.

Entre os "pensadores" não é diferente. Não sei exatamente desde quando, mas há bastante tempo um dos modismos adotados pela intelligentsia nacional é o de falar mal da Rede Globo. Os mais injustos, por extensão, falam mal de quem assiste ao canal também.

"Assiste a globo? Então é um ignorante-alienado-imbecil-alienado!"

Eu compreendo o que leva as pessoas a se empenharem tanto para denegrir a imagem desse canal de televisão: o BBB, aqueles programas horríveis de domingo, as novelas que só tratam de futilidades. Todas essas coisas contribuem para formar uma juventude despolitizada, incoerente, materialista e embrutecida. Eu sei.

Sei também da imparcialidade dos telejornais. Sei que a rede globo esteve por trás da ditadura militar, que financiou torturas e acobertou os crimes dos militares. Sei dos reais interesses dos Marinhos e sei que em matéria de politica, não há nada menos confiável do que um meio de comunicação que tenha o dedo dessa família e de seus colaboradores.

Sei que o Pedro Bial mentia quando disse em 1991, durante o Jornal Nacional, que o sonho havia acabado -já falei sobre isso em outra ocasião.

Mas temos que concordar que a Globo acertou algumas vezes.

Até não muito tempo atrás, a Globo produzia ótimas novelas. Essas novelas mais recentes são horríveis, e transbordam clichês e ignorância pelos seus desinteressantes núcleos. Mas me recordo de uma boa novela global em especial; "A Viagem" de 1994, escrita por Ivani Ribeiro com direção de Wolf Maya.

"A viagem" falava de um rapaz problemático que havia suicidado e que no além vida tinha que repensar seus atos durante a sua passagem pela terra. Enquanto isso, podia observar e até influenciar a vida dos que ainda não haviam feito "a viagem" para o outro lado.

Na verdade, eu lembro bem pouco da novela. Eu tinha 3 anos na época em que a novela passou a primeira vez e 7, por ocasião da primeira reprise no vale a pena ver de novo.

Curiosamente, apesar de não lembrar da novela em si, eu me recordo muito bem de sentar no chão entre as duas pernas da minha avó paterna, enquanto ela bordava sentada no sofá, para assistirmos juntos a novela.

Começava a música de abertura, e eu começava a cantar. Cantava a musica toda, sempre tentando imitar a voz do cantor. No intervalo minha avó parava de bordar, se levantava do sofá, ia até a cozinha e preparava um lanche para mim. Geralmente bolacha de sal molhada com café -meu lanche preferido até os 15 anos, quando eu fiquei bobo e comecei a achar esse lanche simples demais.

Que ótimas tardes eram aquelas!

Ainda hoje essa novela causa um sentimento estranho em mim. É uma coisa meio onírica. Além da gostosa lembrança das tardes entrelaçado nas brancas e quentes pernas da minha avó, sempre que busco essa novela na cabeça, na memória, vêm junto imagens de belas flores, rios muito limpos, grandes campos verdes.

Linhas de bordar muito coloridas, panos imaculadamente brancos.

Os óculos no rosto da minha avó, e por trás deles os belos olhos azuis, perdidos em algum lugar entre o bordado e a tela da TV.

O assovio dela enquanto preparava minha bolacha com café no intervalo. O cheiro de café, o gosto de bolacha na boca. Minha caneca do Palmeiras. As lindas figuras que surgiam dos bordados dela; mulheres com longos vestidos e buquês de flores ornamentadas e coloridíssimas.

Sim, trata-se de uma profusão de lembranças e sentimentos bons, pueris, quentes, inocentes, gostosos.

Para mim, só por ter permitido esses momentos através da novela, a globo já está perdoada de todos os seus pecados.

Hoje eu moro longe da minha avó para estudar e já não tenho tempo para assistir novelas. Nem interesse, na verdade.

Minha velha avó continua bordando. Segue fazendo belas artes com a agulha, as linhas e o pano. Mas bem longe de mim.

Sempre que a barra está pesada, ou a saudade é mais forte que eu, ligo pra ela. Não choro no telefone porque sou orgulhoso. Mas dá vontade! Saudade da proteção dela, sabe?

"Na escuridão o teu olhar me iluminava, e minha estrela guia era o teu riso."

Nesse trecho da musica de abertura de "A viagem", eu sempre lembro dela. Sempre.