Será o Corinthians a vítima da vez do “complexo de vira-lata” da mídia nacional?

Foi Nelson Rodrigues que com sua verve excepcional cunhou a expressão ‘complexo de vira-lata’.

Isso foi lá pelo começo dos anos sessenta – anos de chumbo – quando o brasileiro comum teve sua cidadania política cassada pela ditadura militar. Nelson descrevia esse brasileiro típico como um “introspectivo cabisbaixo, intimidado e submisso à autoridade de plantão, envergonhado até de ouvir a própria voz”.

Hoje vivemos a plenitude democrática e os brasileiros todos podem andar de cabeça erguida e exercer sua cidadania em paz. Claro que estamos ainda longe – o mundo todo está longe – de viver a sonhada democracia econômica, mas a noção de dignidade permeia nossos corações e não nos autoriza acovardamentos. Convivemos ainda com a miséria, a fome e a exclusão ou a inclusão perversa, mas estamos pavimentando caminhos que nos levarão a um mundo melhor, onde solidariedade e justiça social não sejam apenas palavras desprovidas de significado real.

Ensaio estas linhas porque um episódio recente – para uns uma fatalidade e para outros um crime – fizeram-me pensar que talvez estejamos recriando entre nós esse ‘complexo de vira-lata’.

Estou falando da morte estúpida do garoto boliviano atingido por um sinalizador, durante o jogo San José e Corinthians no estádio de Oruro.

Toda mídia tupiniquim mostrou-se indignada e clamando pela condenação exemplar do “culpado”. É fato que o discurso da demagogia é o que primeiro emerge em situações desse tipo. É um discurso fácil que encontra eco no inconsciente coletivo da massa influenciada pela emoção do momento e lhe desperta a ira justiceira.

Mas, afinal, quem é esse famigerado “culpado”? A torcida corintiana que ainda ontem encantava o mundo com sua vigorosa demonstração de amor pelas cores alvinegras? O clube que tanta paixão é capaz de despertar nessa multidão de torcedores fidelíssimos? Serão talvez as “organizadas”? Ou a “Gaviões da Fiel”? A diretoria? Serão porventura os cartolas?

Nada disso. Antes mesmo de qualquer apuração mais cuidadosa dos fatos elegeu-se um bode expiatório: um torcedor fanático. Notei que o ‘torcedor’ foi, recorrentemente, adjetivado pelo ‘fanático’ em praticamente todos os comentários da imprensa especializada. Esse torcedor fanático – definitivamente o culpado, o criminoso – era apenas outro garoto como aquele que pagou com a vida a aventura de ter ido ao estádio para torcer por seu clube. Criminalizou-se o torcedor; criminalizou-se a torcida. Como se o torcedor e a torcida do clube visitante fossem os únicos e exclusivos responsáveis pela segurança no estádio do clube anfitrião.

Eu, com meus botões, havia me perguntado como é que torcedores teriam passado despercebidos por aeroportos, portando rojões, sinalizadores e sei lá mais o quê, se não se consegue passar nem com um canivetinho de bolso ou uma tesourinha de unhas. Soube, depois, que sinalizadores são permitidos e vendidos livremente no estádio boliviano. Tinha que dar no que deu, era uma ‘fatalidade’ anunciada. Mas não ouvi uma voz sequer se rebelar contra a inépcia e a ineficiência da segurança pública, que permite criminosamente que essas armas sejam comercializadas num estádio destinado a prática esportiva do futebol e não do ‘tiro ao pato’. Não ouvi uma voz sequer se indignar com a prisão de doze torcedores ‘visitantes’ tratados como criminosos antes de qualquer julgamento. Isso, dando-se de barato que um deles fosse o ‘culpado’, significaria que outros onze ‘inocentes’ estavam presos indevidamente pela truculência policial na delegacia de um país estranho.

Deveríamos estar exigindo punição exemplar sim. Para o Estado Boliviano e para sua inepta segurança pública. Para que outras vidas não sejam ceifadas à vista de todos pela incompetência da polícia e das políticas de estado. Deve-se exigir do Estado criminógeno que indenize exemplarmente a família da vítima de sua inação e/ou má gestão.

Assim, de peito aberto e com coragem, afirmando-nos na cidadania e na justiça e nos indignando e denunciando os verdadeiros culpados é que evitaremos voltar a ser contaminados pelo ‘complexo de vira-latas’.

Nota: Escrevi o texto acima, de um só fôlego e não me lembrava de que Nelson publicara sua crônica em que mencionou o “complexo de vira-lata” ainda em 1958 e não no início dos anos sessenta. O assunto era, ainda uma vez, o futebol. E Nelson foi profético: o Brasil iria em seguida sagrar-se campeão do mundo, batendo a Suécia no jogo final por 5 a 2. Depois disso ainda amargamos durante a ditadura militar um longo período de humilhação, de “vira-latas”, até sermos finalmente redimidos pela Constituição de 1988, a chamada Constituição cidadã, que nos assegura viver hoje num estado democrático de direito.